8.7.21

IHRU despeja 11 famílias de casas ocupadas no centro de Gaia

Maria Monteiro (Texto) e Nelson Garrido (Fotografia), in Público on-line

Há nove anos, vários agregados apropriaram-se de casas vazias no Bairro de Cabo-Mor, em Mafamude, por não terem alternativa habitacional. Agora, têm ordem do IHRU para sair. Câmara dará “todo o apoio ao IHRU e ao tribunal” para reposição da legalidade. 

Antes de, há cinco anos, ocupar uma das habitações que estavam livres no Bairro de Cabo-Mor, em Mafamude, no centro de Vila Nova de Gaia, Rute Nunes sentia-se como um caracol, sempre com a casa às costas. “Onde eu fosse tinha de levar a minha casa, senão estava desgraçada”, conta ao PÚBLICO. Em 2015, saída da prisão em liberdade condicional e com uma filha bebé, começou a tentar reconstruir a sua vida. Esteve temporariamente em casa da mãe, pediu ajuda ao Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) e foi morar para casa de um vizinho “por favor”. 

Teve de sair quando o vizinho foi preso e ficou sem casa. Andou cerca de um ano a viver “como uma bola de pingue-pongue” — saltava de casa em casa, de favor em favor, e ia à mãe quando queria tomar banho, comer ou lavar a roupa. “Isso não dava estabilidade à minha filha.” No bairro, há muito se sabia da existência de casas públicas que haviam sido renovadas e estavam desabitadas. A vizinha de baixo ia sair dali e perguntou-lhe se “queria ocupar”. Desesperada e sem alternativa, aceitou. Encontrou uma casa degradada, sem portas e com paredes sujas. Pediu ajuda aos irmãos com tintas e produtos para lavar tudo. 

“Não estava habitável.” Na altura, já estava a ser acompanhada pela Segurança Social, devido à sua situação de vulnerabilidade social, económica e habitacional, por isso a instituição terá ficado, desde logo, a par da ocupação. Nos últimos cinco anos, viveu o seu dia-a-dia a olhar por cima dos ombros, mas foi a 30 de Abril que ficou sem chão. “Vieram-me bater à porta, apresentaram-se como doutores do tribunal e informaram-me verbalmente que tinha 14 dias para sair”, recorda. Foto Rute recebeu ordem para sair da casa que ocupou a 30 de Maio. 

Desocupação forçada por “ameaças" Rute pertence a um de 11 agregados que, recentemente, receberam ordens do IHRU para desocuparem as casas, sem lhes ser apresentada uma solução habitacional. Houve quem fosse notificado por carta, mas neste caso, quando pediu para ser avisada por escrito, disseram-lhe que “não tinha direito a isso”. 

“Disseram que eu era um ‘esbulho’”, relata a moradora. Segundo conta ao PÚBLICO, terá havido uma mudança de postura de quem veio comunicar o despejo na segunda visita, a 14 de Junho. “Aí já ameaçaram com um processo, com tribunal de menores.” Os mesmos argumentos terão sido proferidos junto de outras famílias que, temendo ficar sem os filhos, saíram “a bem”.  De acordo com o movimento Habitação Hoje, um dos exemplos é Tatiana, que “após abandonar a casa sob ameaça de retirada das crianças pela protecção de menores, deixou os filhos, um com sete meses e outro com sete anos, na casa dos pais e, sem qualquer solução, vive desde então com o companheiro, num veículo”. 
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Quando, há um mês, Rute bateu o pé, sugeriram-lhe que falasse com a Segurança Social para resolver a situação, mas as opções apresentadas não eram solução. Voltar para a “casa sobrelotada” da mãe, onde também vivem dois irmãos e os sobrinhos, era impensável. Pôs-se, também, a questão de ir para uma casa-abrigo durante dois meses, mas só podia levar a filha mais pequena. “Os dois mais velhos, de que agora tenho guarda partilhada, não podiam estar comigo.” Por fim, propuseram-lhe o aluguer “em zonas [periféricas] como Crestuma, Lever ou Sandim”. Mas, diz, “ali não há casas, e [no centro de] Gaia o mais barato que vi foi 450€ por um T0 ou T1”. 

Valor impossível de suportar, uma vez que só faz uns “biscates de estética”, parcos rendimentos a que se juntam o RSI e abonos. Esforços para regularizar situação Num bloco mais à frente vive Lisandra. Está aqui “fez um ano este mês”, depois de se ter separado do pai dos filhos. Como fugiu de casa, vítima de violência doméstica, não conseguiu levar as crianças para a instituição onde esteve, durante um mês, em 2019. Foi, depois, para casa de uma tia, mas a família não aceitou a separação, “[considerada] uma vergonha por ele ser de etnia cigana”. Cortou relações com a família e teve de se desenvencilhar sozinha. “Tive necessidade de fazer o que fiz”, assume, referindo-se à apropriação da casa onde vive. Mas, pouco tempo depois de chegar aqui, ter-se-á dirigido ao IHRU para “legalizar tudo”, mas o pedido foi-lhe negado.  

Recebeu uma carta em Fevereiro para sair em “dez dias”, fez sucessivos contactos para regularizar a situação, sem sucesso. Também está inscrita para habitação camarária na Gaiurb, mas o pedido permanece sem resposta. Bruna ainda não recebeu ordem de despejo, mas como Lisandra, fez vários esforços junto do IHRU para “pedir uma renda, água, luz, tudo direitinho, porque queria pagar”. “Sempre disseram que tinha de sair, que nunca ia haver contrato”, afirma. 

Teve de sair de casa depois de se juntar com o companheiro, pois ambas as famílias reprovavam a relação e, sem sítio para onde ir, construiu “um barraco onde não tinha nada”. “Só tínhamos água e luz pelas vizinhas que tinham pena da gente”, lembra. Estava grávida e, quando soube que havia “pessoas a arrombar casas para fazer festas e para dançar”, tomou conta de uma há seis anos.  O ambiente foi pacífico até que “começaram a vir para aí pessoas que metem a música muito alta e andam num entra e sai”, acrescenta Marta, irmã de Rute que está na lista de espera da Gaiurb “há 9 anos”. 

“Os vizinhos, tantos anos sem barulho, de certeza que começaram a ligar para a Gaiurb e por um pagam todos”. O certo é que, em Março, o presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, Eduardo Vítor Rodrigues, revelou ter pedido a intervenção do tribunal para agilizar o processo de desocupação das casas do IHRU, que já entrara com uma providência cautelar. Na altura, citado pela Lusa, o autarca disse que se tratava de “apartamentos ocupados clandestinamente” por pessoas que “não são pessoas de Gaia, nem estão registadas em Gaia”. As três moradoras que falaram ao PÚBLICO dizem ter raízes em Gaia e naquele bairro, onde nasceram e foram criadas. “A minha mãe mora aqui desde sempre e os meus sogros também”, indigna-se Bruna. “Basta ir à junta da freguesia ver isso.” IHRU e Câmara querem “reposição da legalidade" De acordo com Helena Souto, da Habitação Hoje, a abordagem do IHRU tem-se caracterizado por uma “violência silenciosa e calculada”, porque a ordem de despejo tem sido apresentada a diferentes pessoas de “duas em duas semanas” para “criar menos união entre as pessoas”. 

“O IHRU não está a cumprir com o dever de garantir habitação para todos que dela necessitem”, critica. O movimento enviou uma carta ao IHRU, à Secretaria de Estado da Habitação e ao Ministério das Infraestruturas e Habitação, mas diz que o “IHRU não tem interesse em resolver o problema”. 

Em e-mail ao PÚBLICO, o IHRU informa que “as situações aqui identificadas não correspondem efectivamente a qualquer processo de despejo, mas antes a processos de desocupação, por motivo de ocupações ilegais promovidas em habitações do IHRU”. Aquela entidade acrescenta que as habitações em causa “iam ser objecto de reabilitação para nova colocação ao serviço das famílias que aguardam, em listas ordenadas, pela atribuição de uma habitação pública”.  O actual contexto de “escassez de respostas públicas face às necessidades existentes”, sustenta, evidencia a necessidade de “através do Programa 1.º Direito, reforçar a resposta existente com vista ao efectivo enquadramento de todas as necessidades da população”. 

O IHRU considera, ainda, que “a existência deste tipo de processo [de ocupação], ainda que possam estar em causa agregados que careçam de respostas sociais, não é compatível com a existência de um procedimento formal para atribuição destas habitações”.  Os processos de desocupação das casas, apesar de não “terem sido suspensos por diploma legal”, foram suspensos pelo IHRU “com o início da pandemia e com a entrada em vigor de medidas mais restritivas de confinamento”, mas a “retoma gradual à normalidade e a necessidade de repor a legalidade na atribuição dos fogos às famílias torna fulcral a prossecução do processo de desocupação dos imóveis” para proceder à sua reabilitação e atribuição a famílias “que se encontram a aguardar nas listas de espera do IHRU e do município”. 

O Instituto refere, ainda, que uma vez iniciado o procedimento cautelar, “é salvaguardado o apoio aos ocupantes destas habitações através da Segurança Social, a fim de garantir uma alternativa habitacional” a estas famílias, “desde que devida e legalmente identificadas junto do IHRU ou dos municípios”. Foto A Câmara de Gaia e o IHRU querem repor a legalidade para atribuir as casas a famílias “que se encontram a aguardar nas listas de espera do IHRU e do município”.

Esta segunda-feira, os moradores participaram numa concentração em frente à Câmara de Gaia para pedir uma audiência ao presidente, mas esta não foi concedida, tendo-se procedido a uma desmobilização accionada pela PSP. Contactada pelo PÚBLICO, a Câmara de Gaia remete para as declarações feitas à Lusa. 

“Não foram recebidos, como não serão recebidos, não seremos complacentes com pessoas que agridem o património público, violam as regras e se utilizam da etnia para se vitimizarem”, disse Eduardo Vítor Rodrigues. O autarca reconheceu que a “Câmara dará todo o apoio ao tribunal e ao IHRU para que haja a reposição da legalidade” e propôs que “se precisam de casa, se inscrevam e respeitem as regras”. As casas, lembrou o socialista, “estavam prontas para entregar a famílias carenciadas” que tinham sido sinalizadas pela Segurança Social.