Sapateiros artesanais estão a reciclar pneus e a transformá-los em calçado. Os sapatos são “baratos e resistentes”, garante quem os faz, acrescentando que esta é uma forma de “combater a pobreza”.
Dezenas de sapateiros artesanais estão a reciclar pneus, transformando-os em calçado, muito requisitado por camponeses e famílias sem posses para adquirir sapatos convencionais nos subúrbios de Chimoio, a capital de Manica, no centro do país.
“Aqui pneu rende, rende”, diz Sebastião Vontade, em declarações à Lusa, numa alusão à transformação de pneus em calçado que ele costura a mão, recorrendo apenas a facas afiadas, para desfiar o pneu, e agulhas improvisadas com arames de aço, para texturas.
Sebastião Vontade começou a reciclar pneus em 1986 no Zimbabué, quando era refugiado da fome e guerra naquele país, e importou a inovação no regresso a Moçambique em 1992, e desde então garante que “clientes nunca faltaram” na sua sapataria, mas a escassez de pneus começou a atrasar vários pedidos.
“Quando eu tenho pneu faço 30 a 50” pares por dia, diz, sentado num banco de madeira e rodeado com várias formas de alpargatas e ‘rasteirinhas’, lamentando que quando há pouca quantidade de matéria-prima limita-se a fazer “um par, dois, cinco pares”.
“Estamos a combater a pobreza” a partir da durabilidade do calçado, realça Sebastião Vontade, que chega a despender 13 horas diárias de trabalho com a reciclagem, insistindo que a maior atracção dos sapatos de pneus está na sua resistência, porque “uma pessoa pobre, quando compra e dura, gosta”.
Um par de tito, wacho, chango ou nhaterra — como os clientes chamam as sandálias e sapatos para sinalizar as etiquetas – chega a ter um a quatro anos de vida útil, tempo suficiente para as famílias redireccionarem o investimento em sapatos para outra extensa lista de necessidades básicas, diz o sapateiro. Os sapatos de pneus também são apelidados de “papa não me gosta”, por não serem fáceis de estragar.
O preço de cada par varia com o tamanho do pé do cliente e custa entre 100 e 250 meticais (entre 1,30 e 3,30 euros). Além da borracha, o único material que entra no fabrico dos sapatos são pregos. Sebastião sente que está “a ajudar” muitas pessoas que passam necessidades ao colocar no mercado sapatos de pneus, remata o sapateiro, num sorriso com um misto de vergonha e orgulho, enquanto costura à sombra da varanda da sua sapataria, uma barraca de blocos de argila e coberta de plástico.
Outro sapateiro, José Miquitaio, que trabalha na reciclagem de pneus há 23 anos, também se ressente pela falta de pneus adequados, porque a maioria dos pneus tubeless tirados de carros importados do Japão — que são a maioria a circular — tem uma composição de arames, que dificulta o trabalho.
“As fábricas ainda continuam a fazer bons pneus, mas o número já é reduzido”, observa José Miquitaio, que viu cair nos últimos anos a sua produção devido à falta de material, apesar da crescente procura pelo calçado. O sapateiro garante que os seus clientes não estão segmentados em classes, porque “aquele que conheceu este tipo de chinelo, mesmo há muito tempo, ainda procura porque precisa e sabe que este chinelo o vai fazer poupar” dinheiro.
O negócio, diz, tirou-o do desemprego e é fonte de sustento de uma família de 13 pessoas. Está a “ajudar muitos camponeses” a deixarem de andar descalços.
Tozinho Vasco, outro sapateiro de Chimoio, lidera uma associação de sapateiros portadores de deficiência, no bairro Francisco Manhanga, e começou a modernizar em 2008 a produção de calçado de pneus para acompanhar a evolução do mercado.
Ele usava as tito para caminhar pelos estabelecimentos comerciais a pedir esmola, quando decidiu com um grupo de cinco amigos na mesma situação aprender a coser calçado de pneus, primeiro adaptados para si, e outros para colocar no mercado e sair da mendicidade. “Descobrimos um mercado em Maputo que vendia palmilhas, furo, cabedal, rebites e fivelas, cola e começámos a trabalhar” na evolução da reciclagem de pneus, explica.
As pessoas “foram descobrir que, comprando este” calçado de pneu, “tem mais durabilidade do que os chineses”, diz, garantido que a sua linha de produção combina agora a durabilidade e a beleza. A pandemia do coronavírus atrapalhou a produção do calçado devido à dificuldade na importação do material da África do Sul para o mercado de Maputo, o que tem afectado o volume de vendas, diz.
“Isto aqui é uma indústria, faltam apenas fundos para poder estar a aplicar na minha indústria”, para tirar muitos portadores de deficiência da mendicidade em Chimoio, refere Tozinho Vasco, que introduziu a capulana — tecido tradicional africano — nos designs do calçado.
Por sua vez, Vontade Nelson, um carvoeiro de Matsinho, interior de Manica, diz à Lusa enquanto compra um novo par de chango, que os sapatos, além de baratos “são muito resistentes”, por isso tem sido esta a opção da sua família.
Os três sapateiros admitem que a procura por calçado de pneus cresceu nos últimos anos e o produto tem estado a ombrear com “calamidade”, nome dado a donativos de sapatos usados, que se tornaram um negócio de luxo que alimenta os mercados de Moçambique e Zimbabué.