por Inês Moreira Santos, in RTP
Se o conflito armado continuar no Iémen, mais de seis milhões de crianças correm o risco de perder um direito básico como a Educação. O alerta é da UNICEF.
É o sexto ano consecutivo que o Iémen enfrenta a já considerada maior crise humanitária do Mundo, com cerca de 21 milhões de pessoas a necessitar diariamente de ajuda humanitária, incluindo mais de 11 milhões de crianças.
Desde 2015 que a escalada tem aumentado e, consequentemente, obrigado milhões de crianças iemenitas a viver em condições cada vez mais vulneráveis. Muitas são mortas, outras mutiladas. A pobreza e a fome aumentou e uma grande parte não tem acesso aos serviços de saúde nem de educação.
"As crianças continuam a ser as principais vítimas desta terrível crise, com 11,3 milhões a necessitar de alguma forma de ajuda humanitária ou assistência de proteção", aponta o relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).
Seis anos depois, a educação das crianças iemenitas tornou-se uma das maiores vítimas do "conflito devastador e contínuo do Iémen". Esta é a conclusão em destaque no relatório "Educação interrompida: impacto do conflito na educação das crianças no Iémen".
Já há mais de dois milhões de rapazes e raparigas, em idade escolar, sem acesso à educação, devido à pobreza, aos conflitos e à falta de oportunidades. É mais do dobro do número de crianças que abandonaram a escola em 2015, quando o conflito começou.
Mas a situação pode agravar: se o conflito armado continuar, mais de seis milhões de crianças no Iémen correm o risco de perder o acesso à educação.
De acordo com os dados divulgados, cerca de 170 mil professores (dois terços do corpo docente do país) não recebem salário de forma regular há mais de quatro anos, devido ao conflito e às divisões geopolíticas, o que levou muitos deles a terem de deixar a profissão e a procurar outras formas de subsistência. Este esvaziamento profissional é também uma ameaça ao acesso ao ensino de quatro milhões de crianças.
O acesso à educação é um direito e, além disso, proporciona uma sensação de normalidade às crianças, mesmo nos contextos mais devastadores. A educação pode até protegê-las - sublinha a UNICEF - de múltiplas formas de exploração.
"As crianças que não concluem a escolaridades ficam presas num ciclo de pobreza que se autoperpetua. Se as crianças fora da escola não forem ajudadas adequadamente, podem nunca mais voltar à sala de aula", alerta a organização.
Crianças privadas do futuro
"O acesso à educação de qualidade é um direito básico de todas as crianças, incluindo meninas, crianças deslocadas e portadores de deficiência", escreveu no relatório Philippe Duamelle, representante da UNICEF no Iémen.
Embora a escalada tenha um grande impacto na vida das crianças, Duamelle considera que "o acesso à educação proporciona uma sensação de normalidade para as crianças (...) e protege-as de múltiplas formas de exploração". Por isso, "manter as crianças na escola é fundamental para o seu próprio futuro e para o futuro do Iémen".
De facto, segundo a UNICEF, os efeitos do conflito prolongado, somados à recente interrupção das atividades de escolares devido à pandemia da Covid-19, podem ter consequências "devastadoras e duradouras" no processo educacional, incluindo a aprendizagem, o bem-estar físico e mental de crianças e adolescentes do Iémen.
O relatório destaca ainda que, quando as crianças não têm acesso à escola, as consequências são "terríveis", tanto para o presente como para o futuro. Por exemplo, muitas meninas são forçadas a casar ainda menores, permanecendo presas a um ciclo de pobreza e potencial não realizado.
Segundo o relatório, 72,5 por cento das raparigas no Iémen casam ainda antes de fazerem 18 anos. O casamento precoce, realça o documento, "torna quase impossível para uma adolescente terminar os estudos". Além disso, quanto mais cedo se casarem mais provável é que tenham mais filhos ao longo da vida, o que, revelam os dados, "reduz a capacidade das famílias para responder às suas necessidades básicas e contribui para a pobreza".
Sem educação, as crianças tornam-se também mais vulneráveis a serem coagidos ao trabalho infantil ou recrutados para combate (mais de 3.600 crianças no Iémen foram recrutadas nos últimos seis anos).
"Em 2013, 17 por cento das crianças do Iémen, com idades entre os cinco e os 17 anos (1,3 milhões de crianças e jovens), estavam envolvidas em trabalho infantil. Hoje, é provável que haja muitas mais, devido ao colapso económico do Iémen".
As crianças e os jovens que não completam a sua escolaridade ou que são obrigados a abandonar o sistema educacional têm maior probabilidade de continuar a viver em condições de pobreza. A UNICEF indica que 84,5 por cento das crianças no Iémen vivem na pobreza e que, a longo prazo, essa situação continuará a perpetuar-se.
"Crianças e adolescentes pobres e vulneráveis também têm maior probabilidade de nunca ter ido à escola, de abandonar a escola e nunca mais voltar à escola".
O pior é que, com o conflito, a pobreza está a agravar-se no país.
De acordo com os dados mais recentes, quase metade dos iemenitas viviam na pobreza em 2014 e, agora, estima-se que as taxas de pobreza nacionais tenham aumentado para cerca de 80 por cento.
A UNICEF acredita que mais de oito em cada dez crianças vivam em famílias que não têm rendimentos suficientes para atender às suas necessidades básicas, como a alimentação, o saneamento ou água potável.
"Educação interrompida"
A UNICEF indica que há mais de 523 mil crianças deslocadas em idade escolar que lutam para ter acesso à educação "porque não há espaço suficiente nas salas de aula existentes". Nos últimos seis anos, milhares de escolas no território foram destruídas, usadas por grupos armados ou ocupadas por famílias deslocadas.
Para além da pouca segurança e qualidade nas condições para a aprendizagem, a maioria das crianças e jovens viu negado o acesso à educação quando as escolas fecharam devido à Covid-19.
"As escolas são lugares onde as crianças sentem alguma aparência de normalidade nas suas vidas, são um refúgio do caos e do trauma da guerra", destaca o relatório. "Quando não podem entrar nas salas de aula, as crianças têm de ficar em casa em comunidades que estão a sofrer os impactos do conflito, da insegurança alimentar e da pobreza".
O Iémen é um país muito jovem, como refere a UNICEF, com 40 por cento da população com menos de 14 anos de idade. Em 2007, a população iemenita foi estimada em 22,3 milhões e estima-se que chegue aos 47 milhões em 2040.
Mas, à medida que a população vai aumentando, "o sistema educacional vai precisar de acomodar um número cada vez maior de adolescentes e jovens".
A agência da ONU receia que se os "desafios ao sistema educacional não forem enfrentados de forma adequada hoje", ou a médio e a longo prazo, "existe uma possibilidade muito real de que o potencial de toda uma geração de crianças seja perdido".
Com este relatório, a UNICEF procura apelar a todas as partes no Iémen para apoiarem o direito das crianças à educação e trabalharem em conjunto para alcançar uma paz duradoura e inclusiva. Tal apelo inclui impedir ataques a escolas (ocorreram 231 desde março de 2015) e garantir que os professores recebem um salário regular para que as crianças possam continuar a aprender e a crescer.
"A educação é um investimento a longo prazo no futuro das crianças e no futuro do Iémen", reitera a UNICEF. "O apoio à educação deve ser previsível e sustentado".