Victor Ferreira, in Público on-line
James Suzman, antropólogo, questiona: se podemos experimentar tecnologia, por que não podemos experimentar a forma como organizamos o trabalho, a vida?
James Suzman é um antropólogo sul-africano radicado em Cambridge, Inglaterra, para onde se mudou para evitar ser militar ao serviço do apartheid em 1988 e de onde agora também quer sair. “Vivo aqui para mal dos meus pecados, mas já não gosto. É a ilha do ‘Brexit'”, explica em conversa, a propósito do lançamento da edição portuguesa do seu mais recente livro Trabalho — Uma História de como Utilizamos o Nosso Tempo (Ed. Desassossego).
Um dos “dias mais felizes” que viveu foi quando saiu da empresa de diamantes De Beers. “Nunca fui feliz no mundo empresarial. Os diamantes são o epítome do mito da escassez. É daí que vem este livro. Resulta de estarmos numa sociedade em que se produz e embala constantemente o desejo infinito e a escassez, duas lógicas económicas sem sustentação antropológica”, defende. O problema, diz, é que são elas que travam o debate sobre questões como o rendimento básico universal, os salários e o bem social do trabalho.
A dada altura do seu livro, cita Benjamin Franklin quando ele disse que se todos nós trabalharmos quatro horas por dia em algo útil isso seria suficiente para satisfazer todas as nossas necessidades. Ele tinha razão? E se sim, por que continuamos a trabalhar mais?
Tinha razão, absolutamente. Como espécie, estamos optimizados para três ou quatro horas de trabalho bom por dia. Convém sublinhar que Franklin falava de agricultura. Mas no geral é semelhante. As pessoas estão oito horas nos escritórios e o tempo em que estão de facto a trabalhar é menor. É por causa desta optimização que, muitos de nós, quando têm trabalhos infindavelmente aborrecidos e que não dão satisfação, vamos para casa e executamos tarefas em que a mente e o corpo se envolvem. Eu cozinho. Outros irão jardinar, caminhar, pintar ou praticar desporto. A forma como organizamos o trabalho, a organização económica, nega às pessoas a alegria de um trabalho satisfatório.
Estudou uma sociedade de bosquímanos na Namíbia. Com eles também era assim?
O meu primeiro livro foi todo ele dedicado aos bosquímanos, que trabalhavam 15 horas em busca de comida e mais 15 horas a fazer outras coisas durante a semana. Houve quem me perguntasse o que é que eles fazem o resto do tempo. Se não se chateavam. Na verdade não, porque metade do trabalho era profundamente satisfatória. Neste livro há uma passagem em que falo do taylorismo, o movimento eficiente. Penso que é assim que o nosso mundo ainda funciona. Rouba-nos a satisfação. Onde nos enganámos, visto que trabalhamos mais do que aquelas três horas de que fala o Franklin? Institucionalizámos o trabalho de uma forma muito estranha, com a nossa obsessão pelo crescimento e pela escassez.
E agora estamos a transformar-nos numa sociedade cheia de competências mas infeliz...
Exactamente! [gargalhada]
Quando é que nos tornámos obcecados com escassez?
A história começa com a agricultura. Os economistas clássicos dizem-nos que os caçadores-recolectores viviam obcecados com a escassez. A etnografia diz-nos que não. A economia clássica diz-nos que evoluímos para desejos infinitos e meios limitados. E, isso, supostamente porque quando éramos caçadores-recolectores estávamos permanentemente a morrer de fome e, como resposta à fome, começámos a acumular cada vez mais. Sabemos que isso não é verdade.
Enquanto para os caçadores-recolectores a terra é intrinsecamente generosa, e a comida uma dádiva que só tem de se colher, o agricultor tem de “fazer a comida”. A terra fornece alimento, mas é preciso trabalhá-la para depois colher. E o retorno é sempre esperado no futuro, ao contrário dos caçadores-recolectores, que se focavam na necessidade do dia. Já o agricultor semeia o cereal na Primavera e com sorte tem alimento pelo Natal.
A segunda coisa que explica essa obsessão é a natureza do risco. Os caçadores-recolectores do Calaári escolhiam entre uma centena de espécies de plantas e 40 espécies de animais. Quando o clima mudava, era só trocar uma coisa por outra. Pelo contrário, as sociedades agrícolas tornaram-se reféns de uma ou duas produções de elevado rendimento. A sobrevivência depende de uma plantação específica. E isso torna-as mais vulneráveis. Ficámos expostos a enormes riscos e aquele que melhor geria esse risco era aquele que teria a melhor colheita. Essa ligação entre trabalho e recompensa impregnou-se, tal como a necessidade constante de adquirir superávites e acumulá-los.
Em todas as sociedades agrícolas houve uma grande mudança teológica. Na passagem de sociedades de caçadores-recolectores para agrícolas, surgem as religiões monoteístas, como o cristianismo, a exacerbar o valor do sacrifício. Deus tornou-se, de repetente, bastante mau. Uma das melhores imagens desse sacrifício e risco é a história de Moisés e o exílio judeu do Egipto. Veja-se a lista de pragas: são precisamente os riscos de uma sociedade agrícola, mesmo com as doenças zoonóticas, que vêm das ovelhas, das vacas, do porco, da comida, tuberculose, etc. Ou agora a covid.
A agricultura é o caldo onde foram cozinhadas estas ideias de que o trabalho árduo é virtuoso e o ócio é pecado, e a de que há uma equivalência entre esforço e recompensa.
Encontrou provas desta transição? Viu os bosquímanos mudarem a relação com o trabalho quando passarem a agricultores?
Comecei a trabalhar com eles no estertor do caçador-recolector. Eles não eram bons agricultores. Entre os mais velhos, esta ideia de ver uma coisa a crescer não fazia sentido. No meu primeiro livro tenho uma maravilhosa lista das falhas agrícolas só porque não se enquadravam na forma de eles pensarem a vida, o seu foco de curto prazo. Com as gerações mais jovens, isso mudou. A geração mais velha encarou os agricultores como uma extensão da floresta. Eles não imaginavam que os agricultores iriam roubar a terra. Viram alguém a chegar com uma vaca e pensaram: vamos comer a vaca. Mas os mais novos deram o salto. Mesmo assim, essa ética do trabalho duro não está muito enraizada. Mas já estão a adoptar esse tipo de símbolos. Entre os mais novos, apesar de serem altamente marginalizados e desesperadamente empobrecidos, com vidas de merda nos arredores de cidades, abraçaram o pentecostalismo. Mais uma vez com esse valor do trabalho árduo, alta recompensa. Durante duas transições geracionais eles não perceberam isso. Achavam absurda e estúpida a nossa forma de organizar a nossa economia, as nossas normas sobre trabalho.
Mas agora já não somos uma sociedade agrícola e continuamos a ensinar ou a acreditar que o valor do trabalho está no sacrifício e que este está ligado à recompensa...
Em parte pela mesma razão por que os velhos jul'hoansi demoraram tanto tempo a mudar. Os humanos são uma espécie de adaptação, mas adaptamo-nos lentamente. Somos criaturas culturais, somos formados pelas instituições nas quais nascemos. Estas tomam a forma de normas e práticas económicas e ideias que vieram da era agrícola. Quando a economia nasceu como disciplina, a agricultura ainda era dominante. As pessoas acreditavam por isso que era preciso trabalhar duro, porque havia uma equivalência com recompensa, mas claro que o mundo estava prestes a mudar, porque começámos a explorar os combustíveis fósseis. Ainda assim, pegámos em todas essas ideias e normas culturais da agricultura e nunca mais parámos de as amplificar, mesmo à medida que escalávamos o consumo de energia fóssil e da quantidade de trabalho que podemos fazer com máquinas. Estamos por isso presos num hábito cultural e construímos estas instituições complicadas.
É por isso que nos custa aceitar o rendimento básico universal?
Essa proposta é uma ideia lógica e óbvia, mas o problema é que essas instituições, como a moral do trabalho árduo e a recompensa, metem-se no caminho. Pensamos como seria possível darmos um rendimento a quem não trabalha. Ou como organizar um sistema fiscal. Ou como lidaríamos com a inflação. Na verdade, poderíamos pensar que tudo não passa de reorganizar as nossas instituições, porque o que temos é um problema institucional.
A segunda questão é que, como criaturas culturais, somos incrivelmente maleáveis. A humanidade expandiu-se por todo o planeta porque somos capazes de improvisar, aprender e mudar. E somos muito bons a mudar quando somos forçados a isso, quando não temos mais opção. Adaptamo-nos rapidamente no meio de uma pandemia. Mas quando temos escolha, tornamo-nos intransigentes. Tememos a mudança mesmo quando sabemos que é a coisa certa a fazer.
No meio da pandemia, vimos o que temos de mudar, mas é notório que batemos em retirada em direcção aos movimentos nacionalistas, o nacionalismo americano, o “Brexit" e toda esta porcaria. Retraímo-nos para dentro de nós mesmos. É uma condição humana: incrivelmente maleável e versátil, ao mesmo tempo intransigente.
Somos infelizes porque concluímos que não há relação entre trabalho duro e recompensa?
Sem dúvida. Na agricultura, oito ou dez pessoas tinham de trabalhar a terra porque era preciso comida para os alimentar. A energia que entrava na terra através do trabalho seria a energia que sairia do alimento para os trabalhadores. Assim que os combustíveis fósseis entraram na equação, a quantidade de trabalho foi aumentada muitas vezes, graças à maquinaria, e, no entanto, mantivemos, de forma quase bizarra, esta ideia do trabalho árduo na nossa sociedade.
Mas o trabalho árduo não funciona?
Em termos económicos, não. Não é por teres dois empregos que vais realizar os teus sonhos. Esta ideia do sonho americano, de que qualquer um, desde que trabalhe arduamente, pode ser o que quiser, é pura falácia. Isso depende primariamente do acesso a capital. Se tiveres sorte e acesso a capital, se tiveres a educação e as redes de contacto, então talvez consigas.
Numa economia automatizada, em que a maior parte do trabalho é feita por máquinas, a utilidade marginal do trabalho humano tem vindo a decair. Nos EUA, há este pânico moral em estados republicanos que estão a acabar com apoios e estímulos criados com o coronavírus, porque dizem que não encontram quem faça os trabalhos de salário mínimo, como virar hambúrgueres. É claro que ninguém quer fazer isso. A utilidade marginal do trabalho humano numa economia cada vez mais mecanizada não existe e, de alguma forma, insistimos em manter as soluções das pessoas mais ricas do planeta. Um CEO [presidente executivo] trabalha muito, sem dúvida, mas não há relação com a recompensa. Ainda assim, repetimos a nós mesmos, enquanto sociedade, essa mentira de que o CEO teve dois milhões de salário base anual e mais dois milhões de bónus e cinco milhões em acções porque ele gerou todo aquele valor para a empresa. Isso é falso. É um mito que repetimos, para justificar a forma como organizamos a economia. Porque queremos todos ganhar o mesmo. Isso é outra coisa que nos faz trabalhar, a amplificação imparável do desejo insidioso de que eu posso ser como aquele. Esta questão está fortemente presente no meu livro, devido ao feroz igualitarismo dos bosquímanos. Como eles dizem, a acumulação é corrosiva e causa problemas. Como espécie, não temos desejos infinitos. Nós queremos é o mesmo que o outro.
É espírito de competição?
Não creio.
Ou é inveja?
Sim! Essa é a palavra usada pelos bosquímanos. A política da inveja. Olhando para história da nossa evolução, estamos presos a sentir inveja porque inveja era uma forma de produzir pequenos grupos sociais funcionais. Ela alimenta aspirações. Estamos numa sociedade em que a escassez não existe, por isso, o que fazemos? Produzimo-la. Como o fazemos? Perseguimos desejos e o instinto de termos tanto quanto o nosso próximo. Sentimos algo errado quando vemos alguém no Instagram a ter mais do que nós. A nossa resposta à desigualdade é um dos desafios e, ao mesmo tempo, um dos grandes catalisadores da nossa história.
Mas é por isso é que trabalhamos muitas horas em coisas inúteis?
Isso ajuda a manter as instituições e esta cultura.
Analisa também a utopia tecnológica de Keynes. Estamos cada vez mais tecnológicos e trabalhamos 60 horas por semana. Segundo Keynes, era suposto a tecnologia tirar-nos horas de trabalho...
Keynes acreditava que a nossa obsessão pelo trabalho seria a única forma de travar aquela utopia. Num sentido, ele estaria certo. Mas quando escreveu esse ensaio famoso, estava a descrever a Grande Depressão. Ele chamou-lhe as dores crescentes do caminho para essa economia utópica. Penso que ele só se terá enganado no período de tempo necessário para estas dores acontecerem. Na verdade, penso que ainda estamos nessas dores de crescimento, dadas as tensões que vemos crescer. Temos esta abundância extraordinária à nossa volta e redistribuímo-la de forma terrível.
Há uma notória perda de fé nessas instituições culturais que nos serviram tão bem até agora e isso manifesta-se no surgimento de certos movimentos de direita, na estranha polarização política e esta insanidade amplificada pela Internet. Mas também se manifesta na emergência de ideias muito precisas e clarividentes sobre como podemos reestruturar e reorganizar a economia sem que sejamos forçados a olhar para trás, para a velha dicotomia capitalismo-comunismo. Podemos olhar em frente e dizer que temos de encontrar algo novo. Há uma comunidade a crescer, a que chamaria a comunidade pós-crescimento económico ou de economia sustentável. Isto pode ser só a viagem atribulada de Keynes para a terra prometida, que demorará mais tempo.
A questão é que é urgente acelerar, porque há uma correlação entre a quantidade de trabalho e o lixo que compramos e produzimos e as consequências ambientais.
A pandemia pôs muitos em layoff. Os trabalhadores essenciais continuaram a trabalhar. Ganhavam menos ou o mesmo que aqueles que ficaram em casa. Isto tem alguma relevância para o debate sobre o valor do trabalho?
Sim, totalmente. A pandemia tem sido interessante a três níveis. Primeiro porque nos fez perceber problemas globais. Precisamos de parar com este paroquialismo. Em segundo, durante um ano trabalhou-se menos do que em qualquer ano da nossa história recente. E isso aconteceu simplesmente porque decidimos que isso não é um grande problema. Em Inglaterra, deixou-se de perguntar quem vai pagar a dívida. A dívida é só um acordo, um sistema que reconhecemos como um efeito organizacional. E por isso mantivemos pessoas em layoff e tudo funcionou de forma razoavelmente bem, enquanto a dívida pública subiu. Mas também todos percebemos que a dívida é apenas uma coisa. Tudo funcionou e, por isso, acabámos por ter este vislumbre de como seria um mundo em que vamos além da ideia de crescimento. A utopia de Keynes não é aquela em que todos nos deitamos ao sol, mas uma em que todos trabalhamos no que queremos e em que somos melhores. Num mundo suficientemente rico, por que deve um músico limpar sanitas para se integrar na sociedade em vez de trabalhar na sua música? Num mundo em que todas as necessidades básicas estão garantidas, acabaríamos por ter mais doutores do que temos agora.
Mas agora não estamos a discutir o valor económico do trabalho mas sim de onde vamos trabalhar. Não estamos a discutir o rendimento básico universal.
Temos um ponto de partida. Confundimos a dignidade do trabalho e o seu significado com a dignidade de um emprego. O emprego é uma invenção recente. As pessoas trabalharam sempre que tinham energia em excesso. Esta narrativa de que nos tornamos uns desperdiçadores se não trabalharmos é mentira. Na verdade acho que nos tornaríamos muito mais produtivos. O músico que tem de virar hambúrgueres e acaba por ter uma vida miserável contribui com o quê para a sociedade? Ter um sistema que possibilite que cada um se foque naquilo que é bom, produz um bem social muito maior e valor acrescentado.
Apoia o rendimento básico universal?
Eu acredito numa coisa: vivemos tempos ímpares. Não sabemos quais são as respostas, por isso, o que podemos fazer é imaginar qual é o resultado que queremos. Temos de experimentar para ver como se chega lá. Gostaria de ver uma mudança na forma como pensamos políticas. Gostaria de decisões políticas que aceitem a experimentação. Deixem-nos tentar isto e ver o que acontece e o que podemos aprender. O rendimento básico universal é uma experiência muito importante que temos de fazer. Se for terrível, voltemos atrás e mudemos. Se podemos experimentar tecnologia, por que não podemos experimentar a forma como organizamos o trabalho, a vida? Mais ainda agora que estamos ricos. Quando toda a gente tem o suficiente, avance-se para a próxima etapa. Quero ver política de experimentação, honestidade e abertura. Esperamos que os nossos líderes tragam soluções.
Tristemente, vemos líderes do Norte da Europa a acusarem os povos do Sul de que não trabalham, o que é mentira, e a concluírem que portanto não merecem ajuda.
Essa é a narrativa. Os países mediterrâneos é que estão certos. Esta expansão neoliberal de tudo, nos últimos 30 anos, tem sido terrível. Há coisas mais valiosas do que o trabalho. Este é o problema quando ligamos o nosso futuro às instituições económicas, baseados numa interpretação errada da natureza humana e da escassez. Tornamo-nos nessas instituições, manufacturamo-nos à imagem delas. Qualquer manual de economia traz nas primeiras páginas o problema da escassez e os desejos infinitos dos humanos. Ninguém questiona este sistema baseado num pedaço de lógica sem suporte antropológico.
Não há hipótese de sermos mais semelhantes aos [pássaros] tecelões-de-cabeça-preta, de que fala no livro, e construirmos ninho após ninho sem interesse económico?
Quando as necessidades básicas estão garantidas, os seres humanos comportam-se de maneira diferente. Temos é de matar o vírus da insatisfação, esta ideia de que amanhã será melhor, de que vamos trabalhar hoje para atingir mais amanhã, o que deixa pouco envolvimento no presente. Os bosquímanos eram muito presentes. Não eram reféns de eternas aspirações em relação ao futuro. Esse é o hiato que temos de entender e obrigar-nos a desenvolver uma economia que permita às pessoas sentir satisfação. Neste momento temos uma economia que pressupõe contínua insatisfação, somos moldados ao trabalho pela ideia de castigo e pelo sonho de um amanhã melhor. Isso não é produtivo. Arriscamo-nos a canibalizar o nosso futuro se continuarmos assim.