30.7.21

Pandemia aumentou consumo de “petiscos” com açúcar entre as crianças

Patrícia Carvalho, in Público on-line

Antes da pandemia, 37,2% das crianças avaliadas ingeria alimentos açucarados mais de três vezes por semana ou todos os dias. A percentagem subiu para 41% durante os primeiros meses da pandemia.

Durante os primeiros meses da pandemia, marcados pelo confinamento, as crianças ingeriram mais produtos açucarados do que era habitual. Mas também consumiram mais fruta fresca. As conclusões constam de um estudo que o Serviço Odontopediátrico da Lisboa (SOL), da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, realizou durante o período em que não pôde dar as habituais consultas gratuitas aos seus pacientes. Com base em respostas relativas a 1566 crianças, entre os o e os 18 anos, os autores do estudo concluíram que houve algumas alterações também ao nível do sono e da frequência com que se lavaram os dentes. As consequências já se fazem sentir.

Sem a possibilidade de poder avançar com as habituais consultas às crianças entre os 0 e os 18 que residem ou estudam em Lisboa, por causa do encerramento dos serviços ditado pelo confinamento, no ano passado, os técnicos do SOL decidiram aproveitar esse período para tentar perceber se o facto de as crianças estarem fechadas em casa, longe da rotina de saída diária para a escola, estava a alterar alguns comportamentos. Curiosamente, quando questionados sobre se as rotinas das crianças, de forma geral, estavam a ser mantidas, apesar da pandemia, 84,9% dos pais responderam que sim, mas várias respostas a perguntas concretas indicaram que não foi bem assim.

Os dados já indicavam que, mesmo antes da pandemia, o consumo de produtos açucarados era bastante elevado - apenas 11,5% das respostas apontavam para a não-ingestão destes produtos, enquanto 34,4% dizia consumi-los duas a três vezes por semana, 21,3% mais de três vezes, 15,9% todos os dias e outros tantos uma vez por semana. As bolachas ou os seus derivados (como cereais ou barritas) apareciam, por isso, entre os principais alimentos que as crianças costumavam “petiscar”, constituindo 79,9% deste consumo. Logo a seguir, estava a fruta fresca, com 71,8% (havia a hipótese de respostas múltiplas), mas os “petiscos” infantis continham mais produtos recheados de açúcar processado, como chocolates, gomas ou rebuçados (20%) ou os bolos (11,7%). Os salgados, como batatas fritas, foram a escolha de 18,1% dos inquiridos.

Durante a inquérito, disponibilizado online, e aberto a toda a população, tornou claro que a pandemia alterou, para pior estes dados, com o aumento de crianças que ingeriu produtos açucarados duas ou três vezes por semana (que subiu para 34,9%), mais do que três vezes por semana (23,1%) ou todos os dias (17,9%). Consumiram-se mais bolachas e derivados (84,7%), mais chocolates, gomas e rebuçados (23,1%) e mais bolos (20,2%). A boa notícia é que também subiu ligeiramente o consumo de fruta fresca, sendo a escolha de 74,1% das crianças durante a pandemia.
"Passaram a petiscar muito mais durante o dia"

“As conclusões foram em linha com as expectativas. Queríamos perceber como é que, em casa, ao fim de alguns dias, as crianças se iam acalmar. Há muitas solicitações e se existirem bolachas ou cereais vai haver mais consumo. Foi o que de alguma maneira aconteceu, mas não só. Não só este produto foi mais consumido como foi consumido com mais regularidade, as crianças passaram a petiscar muito mais durante o dia”, diz o coordenador do SOL e do estudo, André Brandão de Almeida.



O inquérito serviu também para perceber que o sono das crianças sofreu algumas alterações. Apesar de a grande maioria dos pais referir que não houve alterações na rotina do sono dos seus filhos (70,2%), também houve os que indicaram que as crianças passaram a dormir mais horas (17,6%) e outros que dormiram menos do que o habitual (11,9%).

Na frequência da lavagem dos dentes também se notaram algumas alterações. Houve um aumento das crianças que lavaram os dentes apenas uma vez (passou de 18,4% para 22,3%) ou três vezes ou mais por dia (de 16,4% para 19%), mas uma queda das que diziam fazê-lo duas vezes por dia (passou de 62,7% para 55,9%).

Nas respostas enviadas à equipa do SOL também ficou claro que a primeira consulta no dentista é numa idade que André Brandão de Almeida considera tardia: apenas 2,4% teve a primeira consulta com menos de seis meses e 5,2% entre os sete e os 12 meses. Mais de 24% referiu nunca ter tido uma consulta. “Há muitas razões para se levar uma criança ao dentista mesmo antes de ela ter dentes. Se existirem dificuldades de amamentação porque o freio da língua do bebé é curto, por exemplo, fazemos a cirurgia. E até por uma questão comportamental e psicológica, se se habituam ao espaço desde pequeninos, alguns até adormecem durante os tratamentos, quando chegam aos seis, sete anos, o que é óptimo”, diz.

O SOL serve, actualmente, cerca de oito mil crianças, de 38 nacionalidades diferentes. As consequências das alterações vivenciadas durante a pandemia já se fazem sentir, garante o responsável pelo serviço. “As cáries estabilizadas aumentaram muito, os dentes fracturaram, as que tinham uma prevalência maior, aumentaram. Tenho crianças com dez cáries que passaram para 13”, diz.
Bastonária preocupada

A bastonária da Ordem dos Nutricionistas, Alexandra Bento, olha para o estudo do SOL como um trabalho “de mérito” e que acaba por “trazer dados sobre uma percepção que já existia” do que estaria a acontecer com a alimentação das crianças durante a pandemia, mas diz que chama também a atenção para uma outra necessidade. “Devíamos ter dados a nível nacional, trazidos pelas autoridades, sobre a suposta alteração de hábitos alimentares das crianças. A DGS devia fazer um estudo nacional, à semelhança do que fez para os adultos.”

Alexandra Bento lembra que esse trabalho revelou que houve alterações dos hábitos alimentares dos adultos, quase metade para piorar, o que nos “leva a inferir” que o mesmo terá acontecido com as crianças, mas que isso não chega. “O Estado não pode ficar apenas com uma percepção ou com informação trazida por alguns estudos parcelares. É preciso que a DGS saiba dizer aos portugueses o que as crianças estão a comer e os impactos que a pandemia teve nos hábitos alimentares, para que saibamos as repercussões no peso das crianças e desenhar estratégias adequadas”, defende a bastonária, lembrando que Portugal vinha a seguir uma estratégia positiva consistente na redução do peso dos mais novos, com os valores de obesidade entre as crianças a descerem de 15% em 2008 para 12% em 2019.