20.7.21

Lei de 2013 para apoiar as vítimas do tráfico de pessoas com bens apreendidos não foi aplicada

Ana Dias Cordeiro, in Público on-line

Segundo uma lei de 2013, os lucros do crime de tráfico de pessoas são destinados às vítimas. Antes disso, já a Convenção de Varsóvia do Conselho da Europa vinculava os países signatários, como Portugal, a garantir que as vítimas fossem indemnizadas pelos autores das infracções, mas isso não aconteceu.

Houve 94 pessoas condenadas por tráfico de seres humanos entre 2013 e 2019 e, no ano passado, 24 estavam a cumprir pena no sistema prisional português por esse crime. Apesar disso, não houve qualquer entrada de activos financeiros ou valores correspondentes a bens apreendidos a condenados por tráfico de pessoas no Gabinete de Recuperação de Activos (GRA) da Polícia Judiciária (PJ).

Certo é que a partir de 2013 passou a estar expresso na lei que “o produto da receita de bens conexos com o crime de tráfico de pessoas” está destinado “ao apoio de acções, medidas e programas de prevenção do tráfico de pessoas e de assistência e protecção das suas vítimas”.

Essa lei resulta da transposição de uma directiva europeia de 2011, e determina que as verbas apreendidas pelo GRA são destinadas ao Plano Nacional contra o Tráfico de Seres Humanos, de que é responsável o relator nacional para o tráfico de seres humanos, Manuel Albano, vice-presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.
Verbas nulas

Contactado, Manuel Albano, confirma que o GRA “nunca comunicou qualquer verba” que tivesse como destino o Plano Nacional Contra o Tráfico de Seres Humanos coordenado pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) sob tutela da Presidência do Conselho de Ministros.

Porém, deixa claro que “Portugal dispõe de uma lei interna que contempla claramente essa possibilidade de canalizar o produto dos bens relacionados com o tráfico de pessoas para programas de prevenção do tráfico de pessoas e de assistência e protecção das suas vítimas”.

Segundo as estatísticas do Ministério da Justiça, o número de traficantes condenados varia muito consoante o ano, mas chega aos 94 em seis anos (22 em 2014; nove tanto em 2013 como em 2017; dez, 30 e 14 em 2016, 2018 e 2019 respectivamente). Não existem dados disponíveis para 2020, segundo o MJ, mas nesse ano estavam 24 condenados por esse crime a cumprir pena na prisão, segundo os números dos serviços prisionais.
Bens apreendidos

Antes da legislação nacional adaptada à directiva europeia, já a Convenção de Varsóvia do Conselho da Europa colocava a vítima no centro da acção governativa dos Estados signatários. O tratado de 2005 – aprovado pela Assembleia da República em 2008 – assenta no direito das vítimas à justiça (numa língua para elas compreensível), à assistência e ao apoio jurídico gratuito, bem como “a serem indemnizadas pelos autores das infracções”.

Antes da aprovação de uma lei nacional adaptada à directiva europeia, já a Convenção de Varsóvia do Conselho da Europa colocava a vítima no centro da acção governativa dos países signatários, entre os quais Portugal

Questionado, o Ministério da Justiça (MJ) não chega a dizer se esse fundo alguma vez foi criado e o que seria preciso para que tal acontecesse. Às outras perguntas dirigidas ao MJ quem responde é o Gabinete de Administração de Bens (GAB) que depende do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça e tem por missão administrar, conservar e gerir os bens apreendidos, recuperados ou perdidos a favor do Estado em processos judiciais.

Este gabinete, que todos os anos gere milhões de euros em bens apreendidos, confirmou ao PÚBLICO que “não teve sob a sua administração bens declarados perdidos a favor do Estado relativos à prática do tráfico de pessoas” em nenhum momento.

Também a PJ diz que “nunca houve apreensões de bens relacionados com o crime de tráfico de pessoas” antes de 2020. Apenas houve apreensões, no âmbito deste crime, em investigações patrimoniais e financeiras decorridas já em 2020. Aí, o valor dos activos totalizou pouco mais de um milhão de euros (1.079.292 euros), indicou fonte oficial da PJ.

Questionada sobre a proveniência desse valor apreendido (se está relacionado com um ou mais processos e com casos transitados em julgados e já não podem ser objecto de recurso) e qual o seu destino, diz que “não há informação”.

Na esfera da justiça

A PJ responde apenas que “os bens apreendidos ou arrestados não ficam a cargo do [seu] Gabinete de Recuperação de Activos”, mas sim “no âmbito dos respectivos processos judiciais, se forem contas bancárias” ou “sob gestão e administração do GAB [por exemplo se forem activos imobiliários ou de outros bens]”.

Neste último caso, esses activos ou outros bens (que não são contas bancárias) são entregues ao GAB e “qualquer decisão relativa aos mesmos não é do conhecimento do Gabinete de Recuperação de Activos” da PJ.

O GAB, do Ministério da Justiça, coloca como ponto prévio que “não intervém na tomada de decisão sobre a indemnização às vítimas de tráfico de pessoas”. Tem competência, sim, para assegurar "o destino dos bens declarados perdidos a favor do Estado por decisão transitada em julgado” através da sua venda depois de lhes serem entregues pela Polícia Judiciária.

Confirma que “tratando-se de bens conexos com o crime de tráfico de pessoas, após a sua venda” a transferência da receita é assegurada “para a entidade coordenadora do Plano Nacional contra o Tráfico de Seres Humanos”, como determina a lei.

Nenhum benefício

Não havendo receitas, não houve entradas em benefício desse plano de combate ao tráfico ou de apoio às vítimas. “Até à corrente data, o GAB não teve sob sua administração bens declarados perdidos a favor do Estado em que fosse aplicada a lei especial relativa ao tráfico de seres humanos”, esclarece.

“Neste caso, o produto da venda reverteria, naturalmente, para a entidade coordenadora do Plano Nacional contra o Tráfico de Seres Humanos.” Mas isso nunca aconteceu.