Restrições de atividades económicas afetaram o trabalho de 36% dos portugueses, prejudicando mais os que tinham situações mais frágeis. Um quarto das famílias inquiridas no estudo da FFMS acha provável perder pelo menos um emprego nos próximos seis meses. Assimetrias económicas e sociais estão a acentuar-se - com mais desemprego entre os mais frágeis - e podem piorar com fim de moratórias
Além do desemprego causado pela pandemia, as restrições em várias atividades económicas diminuíram o volume de trabalho e os rendimentos de muitos portugueses, deixando mais de metade da população numa situação em que o que ganha já não chega para pagar as despesas ou está em risco de deixar de ser suficiente. É esta uma das conclusões preliminares do estudo “Impactos económicos, sociais e políticos da covid-19 em Portugal”, promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) e divulgado esta segunda-feira.
“Com os presentes dados é possível estimar com 95% de certeza que, entre 55% a 61% da população está numa situação de instabilidade económica, seja por estar em perigo eminente de entrar em desequilíbrio financeiro, ou por já ter entrado em desequilíbrio ao precisar de contrair dívidas para fazer face às despesas correntes do agregado”, afirma Maria Manuela Calheiros, professora da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, que coordenou a análise social do estudo.
Tendo estes dados sido recolhidos durante as moratórias, há ainda um “risco de agravamento”, frisa a psicóloga social. “Esta noção deveria ser incorporada ao nível das medidas de proteção social, tornando-se claro que não é suficiente apoiar trabalhadores que têm vindo a perder as suas fontes de rendimento.”
O uso das poupanças e as dívidas que já estão a ser contraídas vão ter impactos futuros, “uma vez que as poupanças se esgotam e as dívidas têm que ser pagas”. Esses impactos “serão mais ou menos graves dependendo da rapidez e magnitude da recuperação económica já anunciada, por exemplo com os fundos europeus, mas que pode tardar a ter efeitos nas economias familiares”, defende a responsável.
IMPACTO DESIGUAL
Segundo a análise, feita a partir de inquéritos que asseguram a representatividade da população portuguesa, 38% das pessoas dizem estar numa situação de insegurança, “reportando ter gastos equivalentes aos ganhos”, e quase 20% assumem que tem sido necessário recorrer a poupanças ou contrair dívidas para fazer face aos gastos correntes.
As restrições económicas afetaram o trabalho de 36% da população, seja por terem perdido emprego ou por terem visto o volume de trabalho reduzir-se muito. Mas isso não aconteceu de forma equilibrada na população: o desemprego é reportado “com mais intensidade” pelos trabalhadores com menores rendimentos, sobretudo abaixo dos 1500 euros mensais, e quase metade dos trabalhadores por conta própria sentiu uma redução efetiva do seu trabalho.
“Se por um lado, as famílias com maiores recursos reportam precisamente ter aumentado as suas poupanças, alcançando uma situação de ainda maior conforto financeiro, são os agregados com menores recursos quem reporta com maior intensidade ter situações de desemprego ou ter diminuído o seu volume de trabalho, no caso dos trabalhadores independentes”, afirma Maria Manuela Calheiros.
Do relatório sobressaem também os setores em que a maioria das famílias identificou ter reduzido as suas despesas: a Restauração (-64% das respostas); Cabeleireiros, beleza e bem-estar (-58%); Viagens (terrestres e aéreas, -55% e -39%, respetivamente); Cultura (-54%); Vestuário (-54%); e Alojamento temporário (-49%).
O RECEIO DO DESEMPREGO EM BREVE
A par da instabilidade económica, 25% dos inquiridos acham provável que pelo menos um dos membros do seu agregado fique desempregado nos próximos seis meses, sendo esse receio mais comum entre pessoas mais velhas.
“Tendo em conta a dimensão e extensão dos efeitos da crise, este número não é surpreendente”, refere Miguel Portela, professor da Universidade do Minho e um dos investigadores envolvidos na análise económica. “Note-se que durante a recessão da economia portuguesa, no contexto crise da dívida soberana e da crise financeira internacional, a taxa de desemprego da população ativa entre 15 e 74 anos chegou aos 18%; e aos 43% no caso dos jovens entre os 15 e os 24 anos.”
Sublinhando que “desigualdade económica leva a desigualdade social, afetando o desenvolvimento da sociedade como um todo”, Maria Manuela Calheiros lembra que sociedades desiguais “trazem prejuízos para a economia, saúde pública e progresso educacional”.
A assimetria deste impacto nos diferentes grupos da sociedade “é, indiscutivelmente, um fator extremamente preocupante e já está a contribuir para acentuar as desigualdades sociais pré-existentes”, refere. E o problema também passa pelo impacto noutras áreas. “Menor capital económico potencia maiores disrupções socio-emocionais e poderá implicar também redução do capital intelectual, por exemplo. Esta propagação horizontal do risco é difícil de medir mas pode gerar dinâmicas de exclusão social severas.”
O estudo promovido pela FFMS teve como base inquéritos com três amostras de 1150 participantes cumprindo quotas de sexo, grupo etário e região. O trabalho de campo que produziu estes resultados ocorreu entre 16 de março e 20 de maio de 2021.
Realizado por investigadores do ISCTE-IUL, Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, Universidade de Aveiro e Universidade do Minho, a análise foi coordenada inicialmente por Nuno Monteiro, professor em Yale, que morreu em maio, depois substituído por Carlos Jalali, da Universidade de Aveiro.O estudo final deverá ser publicado na primavera do próximo ano.