2.7.21

Um quarto de século de Rendimento Social de Inserção: que futuro?

Ana Sofia Branco, in o Observador

Estamos verdadeiramente a promover a resolução dos problemas sociais complexos, ou estamos a despejar dinheiro em cima de tais problemas, sem os resolver de facto?

A 1 de julho de 1996 Portugal assistiu à criação do Rendimento Mínimo Garantido (RMG), atualmente e desde 2003 com uma nova designação de Rendimento Social de Inserção. O RMG foi introduzido em Portugal pela Lei 19/96 e decorre da recomendação da Comissão Europeia de 1992 no sentido de serem criadas medidas de rendimento mínimo nas políticas sociais de todos os Estados‑membros, como forma de combate à exclusão social. Ao promover a universalidade do direito a mínimos sociais, o RMG veio romper quer com os princípios, quer com as metodologias até então seguidas no modelo social português (baseado, essencialmente, em prestações dos regimes contributivos) dando origem a uma nova conceção de políticas ativas de inserção.

O RMG era uma medida estabelecida no âmbito do sistema de proteção social de cidadania e do subsistema de solidariedade, assentando em dois pilares básicos: uma prestação sujeita a condição de recursos e um programa de inserção social. Adicionalmente, o RMG apostava também na ideia de associar a inserção social e profissional do beneficiário a uma lógica de responsabilidade coletiva, entreajuda e parceria, através da criação de Comissões Locais de Acompanhamento.

Em 2003, quando o RMG foi revogado e substituído pelo Rendimento Social de Inserção (RSI), os princípios básicos mantiveram‑se, sendo que as principais mudanças visaram o nível da contabilização dos rendimentos, as condições de elegibilidade e o conceito de agregado familiar. Procurou‑se também reforçar o envolvimento da sociedade civil, através da celebração de protocolos com os Parceiros Sociais e a substituição das Comissões Locais de Acompanhamento por Núcleos Locais de Inserção. Mas será que isso realmente aconteceu?

O RSI é constituído hoje por uma prestação financeira consagrada como um direito universal, que deveria ser transitório, estruturado em volta de critérios estabelecidos, por um programa de inserção operacionalizado num contrato entre os beneficiários e o Estado. A elaboração do citado contrato devia contar com a participação de diferentes organismos que protocolam o programa de inserção e em que ambas as partes aceitam levar a cabo um conjunto de ações necessárias para a integração social, profissional e comunitária gradual da família ou beneficiário. Mas hoje, na generalidade dos casos, o RSI é um contrato entre um gestor do processo social e um beneficiário, uma dupla só e mal-acompanhada. O técnico sem recursos e o beneficiário remetido a uma candidatura administrativa. Se corre bem, uma salva de palmas para a medida política, quando corre mal, ou o técnico é um incompetente ou o beneficiário rotulado de “parasita do Estado Social”. O Estado, esse raramente é chamado a prestar contas. Entretanto, ficamos entretidos a discutir o estigma e preconceito em torno da medida e dos beneficiários, esquecendo que os abusadores, preguiçosos e os fraudulentos só têm espaço de existência por falta de controlo e supervisão da execução da medida (RSI). Tal controlo e fiscalização deveriam ser tão prioritários quanto a concessão do apoio financeiro.

A medida do RSI ao longo da sua implementação perdeu a sua notoriedade de política ativa, assumindo hoje um mero papel paliativo de acesso a recursos financeiros. Este estado de coisas fundamenta-se na ausência de um verdadeiro empenhamento por parte das entidades públicas (IEFP, Ministério da Saúde, Instituto de Segurança Social) que deveriam ser ativamente intervenientes no processo, mas que hoje se remetem a uma mera formalização/homologação de um plano de inserção elaborado pelo gestor do processo com a “colaboração” do beneficiário. Igualmente, os recursos materiais no plano da formação e emprego carecem de adequação face às competências dos beneficiários.

O RSI é uma medida da política social que se transformou na atualidade num processo burocrático. Os técnicos gestores do processo são pressionados para cumprirem prazos e processos legais que a Lei do RSI determina, deixam por isso de ter tempo efetivo para o acompanhamento social, por estarem completamente assoberbados com a execução de atos meramente administrativos. Casos reais são-nos descritos como uma aventura de sorte e azar com o funcionário que vamos encontrar num qualquer balcão de um organismo público. Ao beneficiário do RSI é solicitado uma inscrição em Centro de Emprego ou em alternativa, por razões de doença, deve apresentar um Certificado de Incapacidade Temporária para o Trabalho (baixa médica). Aqui, começa o “filme”. Alguns médicos entendem que não devem certificar esta incapacidade, uma vez que ela destina-se a quem se encontra a trabalhar e os beneficiários de RSI não estão, na sua maioria, efetivamente a exercer atividade profissional. Em algumas situações o IEFP revela resistências em inscrever o beneficiário, uma vez que o mesmo informa ter patologias que o incapacitam de exercer atividade profissional. Nesta roda viva do jogo do empurra entre organismos públicos ficou amarrada a tão acalmada política de inserção ativa.

Caro(a) leitor(a) o cenário pode ainda ser mais aterrador quando o candidato a beneficiário do RSI tem um elemento na família que recebe uma Prestação Social para a Inclusão ou uma Pensão de Invalidez, pois o processo de candidatura exige a apresentação de um certificado Multiusos que ateste a sua incapacidade e nos tempos de hoje adquirir tal certificado é uma “Batalha de Golias”.