23.11.20

A “verdadeira dicotomia” na UE, segundo Costa: “União de valores fundamentais” ou “instrumento para gerar valor económico”?

Hélder Gomes, in Expresso

O primeiro-ministro reconheceu que a presidência portuguesa da UE enfrenta várias incógnitas, incluindo a perspetiva de um pós-Brexit “traumático” e o bloqueio à aprovação do Orçamento da União e do programa de recuperação. Mas quase todos estes pontos parecem presos por uma dúvida, ou divisão interna: ainda será possível reconstruir uma ideia comum? Na mesma conferência, em Lisboa, Durão Barroso baixou a expectativa: esta quarta presidência portuguesa será “talvez uma presidência com menos glamour, menos glória” do que as três anteriores

A execução do Quadro Financeiro Plurianual (QFP) e do programa de recuperação e resiliência, o reforço da autonomia estratégica e a liderança europeia na transição climática e digital são três aspetos fundamentais da presidência portuguesa da União Europeia (PPUE), que arranca a 1 de janeiro. O primeiro-ministro, que os enunciou esta segunda-feira na Universidade Católica, em Lisboa, lembrou as incógnitas que a PPUE enfrenta, designadamente a perspetiva de um pós-Brexit “traumático” e o bloqueio à aprovação do QFP e do programa de combate à crise provocada pela pandemia de covid-19, protagonizado pela Hungria e pela Polónia, “bloco a que se juntou a Eslovénia”.

Outra marca da presidência portuguesa será, espera António Costa, “o desenvolvimento do Pilar Europeu dos Direitos Sociais”, com a Cimeira Social de 7 e 8 de maio no Porto. “O modelo social europeu tem de ser a base da confiança do conjunto da sociedade”, sublinhou António Costa, reconhecendo que as transições têm custos. “Há uma enorme angústia” porque os postos de trabalho criados pelas transformações “não serão para as mesmas pessoas”, o que tem alimentado “correntes populistas e nacionalistas com vertentes xenófobas e iliberais”. Torna-se pois necessário “reforçar a confiança das pessoas para combater o medo”, além de “reforçar as qualificações para capacitar todos, investir mais na investigação para melhorar a competitividade das empresas e reforçar a proteção social para garantir que ninguém fica para trás”, destacou.

Mas há mais: entre as prioridades da PPUE está ainda colocar em marcha a estratégia para “reforçar a autonomia estratégica” do espaço comunitário. “A Europa não pode estar dependente” de mercados terceiros, como se viu na disponibilização de equipamento de proteção individual durante a pandemia, mas também “não pode assentar numa visão protecionista”, antes “em cadeias descentralizadas, em redes que funcionem à escala europeia nos domínios da investigação e da produção”, definiu Costa. “Portugal quer deixar a marca num contributo para um mundo multipolar – e não apenas bipolar –, com divisão de poder, juntou. Como “jóia da Coroa” desta presidência o primeiro-ministro elegeu o encontro dos líderes europeus com o seu homólogo da Índia, “um dos grandes países do futuro e a maior democracia à escala global”.

“VÁRIOS ESTADOS-MEMBROS A DEFENDER O QUE O REINO UNIDO DEFENDIA”

Ainda durante o próximo semestre, que estará muito marcado pela pandemia e com alguns encontros por videoconferência, terá início a conferência sobre o futuro da Europa. Será prioritária “uma revisão dos tratados” europeus ou “uma ambição coletiva dos Estados-membros”? “Os europeus precisam menos de revisão de tratados e mais de respostas”, longe da “visão regionalizada do passado”, sustentou Costa. A “verdadeira dicotomia” na UE é saber se esta é “sobretudo uma união de valores fundamentais” ou “sobretudo um instrumento económico para gerar valor económico”.

O Reino Unido viu na UE essencialmente “uma plataforma de geração de valor económico”: com o Brexit, “deixámos de ter o Reino Unido e passámos a ter vários Estados-membros a defender o que o Reino Unido defendia”, avaliou o primeiro-ministro. Entre estes encontram-se alguns dos fundadores do projeto europeu, que “hoje têm uma visão distinta do que deve ser a UE”. Portugal pode dar um contributo fundamental neste diálogo, acredita Costa, uma vez que a adesão do país à então CEE, “mais do que um projeto económico, foi um projeto político de integração”.

“PLATAFORMA DE ARTICULAÇÃO COM OUTROS CONTINENTES”

Logo no arranque da PPUE abre-se a “oportunidade para um novo relacionamento transatlântico” com o regresso de “um aliado determinante no combate às alterações climáticas”. O Presidente eleito nos EUA, Joe Biden, já prometeu regressar ao Acordo de Paris, reforçar o multilateralismo e tornar “mais favorável” um relacionamento comercial entre os dois lados do Atlântico, recordou Costa.

Portugal deverá funcionar como “uma plataforma de articulação com outros continentes”, defendeu ainda, reforçando as ligações à América Latina, Austrália, Nova Zelândia e Marrocos, entre outros. “Antes de ser uma união aduaneira ou monetária”, o projeto europeu era “uma união de valores e de paz no pós-guerra”, lembrou ainda, almejando para os Estados-membros um “futuro de prosperidade partilhada”. Costa reconheceu, ainda assim, que a presidência portuguesa arrancará com algumas incertezas e será antecedida por “uma corrida a contrarrelógio” devido às negociações do pós-Brexit e da aprovação do Orçamento da UE e do programa de recuperação.

PORTUGAL NA “CASA DAS MÁQUINAS” DA UE, DIZ BARROSO

Durão Barroso, ex-presidente da Comissão Europeia e diretor do Centro de Estudos Europeus da Universidade Católica, foi o moderador da conferência. Na sua alocução inicial, o antigo primeiro-ministro considerou as presidências semestrais “um elemento essencial de apropriação da UE pelos seus Estados-membros”, que ocupam rotativamente a “casa das máquinas” da União. Esta quarta presidência portuguesa será “talvez uma presidência com menos glamour, menos glória” do que as três anteriores, prognosticou.

Relativamente às negociações sobre a relação futura entre o Reino Unido e a UE, Barroso declarou que um acordo de comércio, mesmo que “minimalista”, será sempre “preferível para evitar ressentimentos”. O antigo presidente da Comissão referiu ainda que a presidência portuguesa será “a ocasião ideal para fazer um reset nas relações entre a UE e os EUA”.