30.11.20

Portugal criticou no Conselho da UE a proposta de um mecanismo de defesa do Estado de direito

Paulo Pena, in Público on-line

A posição de Portugal, nas reuniões à porta fechada do Conselho da UE, sobre as regras do Estado de direito é elogiada pelo ex-ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia. Nas actas da Alemanha, Portugal aparece como “muito crítico” da proposta que levou a Hungria e a Polónia a vetar o orçamento comunitário.

Portugal “jogou do nosso lado”. A informação nova surgiu a meio de uma entrevista, por telefone, com o anterior ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia. Witold Waszczykowski é desde 2019 eurodeputado do partido Lei e Justiça (PiS), que governa em Varsóvia, e explicava-nos a oposição do seu Governo ao mecanismo do Estado de direito. Denunciava o que diz ser uma “guerra ideológica”, e as tentativas de “chantagem” que os países exercem no Conselho da UE. E, de súbito, fez aquela revelação: “Por vezes a oposição acusa-nos de apoiar apenas um país, a Hungria, mas sabemos que isso não é assim. O Grupo de Visegrado, e vários outros países, como a Eslovénia, Letónia e Portugal, jogaram do nosso lado.” A tradução aqui é importante. A expressão exacta de Waszczykowski foi “played together with us”.

Esta era, de facto, uma informação nova sobre a actual crise da União Europeia. O Fundo de Recuperação, a famigerada “bazuca” que tenta inverter os custos sociais e económicos da pandemia, está num limbo; dois países anunciaram o seu veto às políticas orçamentais porque discordam da introdução de um mecanismo de “protecção” para os financiamentos europeus “em caso de deficiências generalizadas no que diz respeito ao Estado de direito nos Estados-membros”.

Quase todos os europeus já ouviram o nome desses países, que se opõem à regra de protecção do Estado de direito: Hungria e Polónia. Naturalmente, aliás. Esses são os dois estados da UE onde muitas investigações, parlamentares, jornalísticas e de ONG, revelaram alterações profundas, e politicamente orientadas, do sistema judicial, das regras da liberdade de imprensa e da forma como são tratadas as minorias (política de refugiados, discriminação sexual, entre outras).

O que muito poucos sabem é que Budapeste e Varsóvia não estiveram sozinhas nesta oposição à medida proposta pela Comissão Europeia no dia 3 de Maio de 2018, e que aguarda desde então a aprovação pelo Conselho da UE. A razão é simples: o Conselho é um órgão legislativo, mas o que se passa nas suas reuniões preparatórias é um segredo diplomático bem guardado.

O Conselho não divulga as actas das suas reuniões preparatórias. Por isso, é muito difícil confirmar que posição tomou cada país sobre uma lei. Mas uma fonte, verificada, que teve acesso aos documentos oficiais da delegação alemã no Conselho, forneceu-nos uma prova adicional. Nos resumos das discussões, feitos pelos diplomatas alemães no Conselho, Portugal é descrito como “muito crítico” da proposta de criação de um mecanismo de salvaguarda do Estado de direito.
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No dia 12 de Novembro de 2018, uma segunda-feira, Ana Paula Zacarias, secretária de Estado dos Assuntos Europeus, fez uma intervenção de fundo na reunião do Conselho, que decorreu à porta fechada em Bruxelas. A delegação alemã anotou. “ITA [Itália] e PRT [Portugal] foram muito críticos e questionaram a proposta, incluindo a falta de ligação entre o Estado de direito e o orçamento, a duplicação dos procedimentos existentes e a necessidade do mecanismo.”

Esta foi a única posição de fundo assumida por Portugal ao longo de toda a discussão. Os aliados de Lisboa foram, como vimos, a Itália, que na altura era governada por uma coligação onde pontificava Matteo Salvini – aliado táctico de Orbán –, e outros países de leste, como a República Checa, a Eslováquia, a Bulgária e a Croácia. Estes eram, para a Alemanha, os países “com dúvidas e críticos” da proposta.

A “linha vermelha”

Do início ao fim, como atestam as actas da Alemanha de todas as reuniões que decorreram no Conselho, à porta fechada, Portugal nunca defendeu a proposta original da Comissão Europeia, que foi aprovada pelo Parlamento Europeu. Numa das últimas reuniões, no dia 29 de Setembro deste ano, os países discutiram uma proposta de “compromisso” da presidência alemã. As mudanças no mecanismo eram tantas, que alguns países (como a Bélgica e o Luxemburgo) se queixavam de que o Conselho estava a ir “longe demais” nas cedências. Um outro grupo de países (Holanda, Áustria, Suécia, Finlândia, Irlanda, Dinamarca) consideraram o compromisso “inaceitável”, por moderar demasiado o mecanismo do Estado de Direito. A Hungria e a Polónia, por seu lado, continuavam a considerar que a lei, mesmo tão revista, ainda ia longe de mais.

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Portugal, no final deste processo, estava entre estes dois grupos opostos de países. “A proposta teve em conta as diferentes posições dos Estados-membros e equilibrou-as bem”, defendeu a representação do Governo. Esta posição foi secundada pela República Checa, a Eslováquia, a Croácia e Chipre.

Como o Ministério dos Negócios Estrangeiros declara nas respostas que nos enviou, por escrito, a posição conhecida de Portugal era outra. “O não respeito pelo Estado de Direito, sempre foi uma “linha vermelha” para o Governo. O primeiro-ministro já referiu várias vezes publicamente que quem não cumpre os valores fundamentais tem de sair da UE.”

Com esta posição de princípio, como se justifica a actuação dos representantes portugueses no Conselho da UE? O ministério começa por garantir que “não é verdade que o Governo tenha defendido que ‘não há qualquer ligação’ entre o princípio do Estado de direito e as regras orçamentais da UE”. Mas explica que assumiu uma linha diplomática nas negociações. “Ao longo desta negociação, a posição do Governo foi sempre de disponibilidade para encontrar uma solução que permitisse alcançar um acordo global em que todos os Estados-membros se revissem, que respeitasse o equilíbrio de um consenso – sempre difícil numa União a 27.”

E este é o ponto fulcral: será possível haver um acordo deste tipo, unânime e consensual, entre visões tão diferentes? Um relatório da Transparência Internacional (TI), que será publicado no próximo dia 8 de Dezembro, critica a forma como tudo se passou e aponta a falha: o mecanismo do Estado de direito “poderia ter sido adoptado rapidamente por maioria qualificada. Em vez disso, o Conselho só avançou nesta matéria ao negociar o quadro financeiro plurianual 2021-27, que exige unanimidade, dando aos países que se opõem a um quadro reforçado do Estado de direito a oportunidade de manter as negociações reféns – um exemplo claro de como a cultura da unanimidade mina a capacidade do Conselho de se precaver contra o abuso dos fundos orçamentais da UE em países onde o Estado de direito está ameaçado”.

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Mesmo que nunca se tenha oposto, por princípio, ao mecanismo, Portugal ajudou, com a sua posição crítica no Conselho, a adiar a sua aprovação, como revelam as actas consultadas pelo Investigate Europe. E isso teve uma consequência: ao ficar “em discussão” durante mais de dois anos, à porta fechada, no Conselho, o mecanismo deu à Hungria e à Polónia uma carta de peso no jogo, quando a UE precisa de aprovar o auxílio de emergência para a crise provocada pela covid-19.

A “falta de transparência sobre as posições individuais de cada país”, critica a TI, “ameaça fundamentalmente a legitimidade do processo, uma vez que não é claro para os cidadãos que países bloqueiam uma decisão e porquê”.

A posição assumida pelo Governo português não traduz nenhuma posição que tenha sido votada, em Portugal. Em Junho de 2018, as comissões responsáveis do Parlamento nacional analisaram a introdução deste mecanismo e não levantaram qualquer dúvida ou crítica. A Comissão de Assuntos Europeus e a de Orçamento, Finanças e Modernização Administrativa aprovaram dois pareceres sobre a proposta da Comissão, que enviaram para Bruxelas. Nada escreveram sobre a redundância, ou desadequação, da proposta da Comissão.

No dia 19 de Janeiro de 2019, em Estrasburgo, o Parlamento Europeu foi chamado a votar sobre a proposta. Nenhum eurodeputado português votou contra a medida proposta pela Comissão, que foi aprovada por 72% do plenário (só o PCP, posteriormente, assumiu a sua rejeição). Todos os eurodeputados do PS votaram a favor. Pedro Silva Pereira e Manuel dos Santos deram parecer positivo nas comissões que integravam.

Ana Gomes, outra das eurodeputadas socialistas que aprovaram o projecto, fica surpreendida quando lhe revelamos que o Governo tinha uma posição crítica no Conselho. “Não me lembro de alguma vez o Governo querer discutir este assunto comigo, que era quem estava na Comissão LIBE do Parlamento Europeu e tinha de estar repetidamente a tomar posição sobre a matéria. E obviamente a minha posição foi sempre pela defesa dos princípios e valores fundamentais da UE. Se calhar nunca quiseram discutir isto comigo para não me desvendar qual era o posicionamento que o Governo estava a defender no Conselho…”

Ana Gomes salienta a importância da “posição unânime dos deputados socialistas e de todo o Grupo S&D”, que era a de garantir um mecanismo, “com sanções, justamente para casos como a Hungria”. “Esta era e é das questões mais importantes, estratégicas mesmo, da Europa.”

A importância do assunto, na opinião dos cidadãos europeus, é atestada pela mais recente sondagem realizada a pedido do Parlamento Europeu. “Mais de três em cada quatro inquiridos concordam: Os fundos da UE devem ser condicionados à implementação do Estado de direito e dos valores democráticos por parte do governo nacional.” Em Portugal, segundo a mesma sondagem, 77% dos inquiridos concordam com a existência dessa condição “democrática” para que um país aceda a fundos comunitários.

Os segredos do Conselho

O caso do mecanismo do Estado de Direito é apenas um exemplo, numa longa lista de casos, da forma como o Conselho da UE bloqueia leis, sem que se conheça uma razão para que isso aconteça.

Estão actualmente 158 propostas em “processo de co-decisão”. No Conselho há actualmente 63 diplomas, 17 destes há mais de 3 anos, que aguardam pelo “sim”, ou o veto, dos estados. Este número diminuiu desde Outubro, porque a Comissão Europeia decidiu retirar 18 directivas que se encontravam paradas no Conselho. Porquê? Quem se opunha a elas? Responder a essas perguntas fundamentais é uma tarefa longa e difícil. A equipa de jornalistas Investigate Europe pretende acompanhar e revelar os bastidores de um processo legislativo que se mantém secreto, apesar das críticas.

Um dos nossos trabalhos mais recentes mostrou como um país oficialmente “neutro”, que era a Alemanha, influenciou outro país, a Croácia, para se opor a uma directiva que obriga as grandes multinacionais a revelar onde pagam impostos, e qual o seu valor. Também nesse caso, o Governo português assumiu à porta fechada uma posição contrária à que defendia em público (no seu programa, ou na forma como os seus eurodeputados votaram o diploma).

Nos próximos trabalhos, que resultam de vários meses de pesquisa, mais de 50 entrevistas a responsáveis com conhecimento directo sobre o assunto, e análise de documentos, legislação e dados, tentaremos retratar o mais importante - e desconhecido - dos legisladores que decidem sobre as nossas vidas: O Conselho da UE. Uma instituição política, em que não são os políticos eleitos, mas os funcionários dos governos nacionais, que legislam. Um órgão onde o segredo diplomático dificulta a tomada de decisões e impossibilita o escrutínio público e onde várias reformas desejadas pelos cidadãos (como as que referimos neste texto) são bloqueadas sem que os responsáveis por esse “veto” tenham de justificar publicamente as suas decisões - e onde a influência do lobby, e alguns negócios difíceis de explicar, prevalecem-, longe da vista dos eleitores, e alimentando o crescente populismo anti-Bruxelas.

Com Harald Schumann, Sigrid Melchior e Wojciech Ciesla

*Investigate Europe é um projecto iniciado em Setembro de 2016 que junta jornalistas de nove países europeus. Este trabalho foi financiado em Portugal pela Fundação Calouste Gulbenkian com uma bolsa de investigação jornalística. Investigate Europe tem o apoio das fundações Adessium (Holanda), Cariplo (Milão), Stiftung Hübner und Kennedy (Kassel), Fritt Ord (Oslo), Rudolf Augstein-Stiftung (Hamburgo), GLS (Alemanha) e Open Society Initiative for Europe (Barcelona).