19.11.20

“Esta guerra sem soldados, nem espingardas, nem canhões, estamos morrendo aos milhões, e quem foram os culpados?” Músicas à janela

Bernardo Mendonça, in Expresso

O realizador Tiago Pereira anda desde abril pelo país a registar as cantigas, rezas, responsos, benzeduras e histórias de vida de que os mais velhos ainda que não se esqueceram. Chamou ao projeto “A música portuguesa, à janela, a gostar dela própria”, que acaba de vencer a 8ª edição do Prémio Maria José Nogueira Pinto, por aliviar a solidão e o isolamento dos idosos em tempos de pandemia

A MÚSICA PORTUGUESA A GOSTAR DELA PRÓPRIA. GRAVAÇÕES EM SOUSEL, PORTALEGRE

Há meses, quando o novo coronavírus já andava por aí, o realizador Tiago Pereira estava a filmar uma velha senhora, na sua horta, na região de Vila Nova de Poiares, distrito de Coimbra, quando irrompeu por entre as verduras uma mulher com o filho ao colo, muito aflita, a pedir uma benzedura que retirasse ao seu pequenote a ‘espinhela caída’. Rogou que a velha senhora lhe fizesse logo ali ‘um responso’, uma espécie de reza, que aliviasse o filho das dores no peito, pois estaria supostamente a sofrer de um deslocamento do externo. A benzedora lá lhe fez o favor, dizendo algo assim, como se ouve num dos vídeos de Tiago Pereira:

Mal de inveja/mau ódio/mau olhado/ feitiços/feitiçarias/bruxas/bruxarias/mal de orgulho/egoísmo/tudo quanto for mal no corpo do Tiago/ tudo vai ser afastado.

“Estamos em 2020 e isto aconteceu à minha frente.”, conta-nos o realizador Tiago Pereira. Momentos como este, inesperados, genuínos e tão portugueses, é o que o realizador e diretor artístico da associação cultural “A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria anda a captar.

Com um projeto de recolha musical popular que já conta com 9 anos de existência, adaptou-o ao contexto pandémico e, desde o final de abril, com as devidas distâncias de segurança e máscaras, tem andado a filmar pessoas, na sua maioria idosos, à janela ou nos quintais de suas casas, pedindo-lhes que partilhem não só canções que saibam de cor, como também rezas, responsos, benzeduras, estórias de vida, contos, danças, ou mesmo sugestões de gastronomia.

Começou na região de Vila Nova de Poiares, onde gravou 70 vídeos de enfiada num só mês. E daí seguiu para sul, para o Alentejo - Sousel, Montemor-o-Novo, Borba e muitas outras localidades. “Há muito que me interessa dar voz a estas pessoas - que estão sozinhas, isoladas e não têm uma grande autoestima -, ainda mais agora, neste contexto. E ao escutá-las, estando mais tempo com elas, permite-lhes que se lembrem de mais coisas e deixem para trás aquela atitude peculiar de “eu não sei nada”, “aquilo que eu sei não tem valor”. Porque tem, tudo tem valor. E, ao perceberem que afinal o que sabem interessa, estes idosos ficam com um reforço cognitivo e da autoestima”, explica Tiago Pereira. Pelo projeto “A música portuguesa, à janela, a gostar dela própria”, o realizador e documentarista venceu a 8ª edição do Prémio Maria José Nogueira Pinto, no passado dia 28 de outubro.

Esta distinção, que todos os anos contempla projetos inovadores de cariz social, escolheu desta vez o trabalho do realizador por “continuar a ir ao encontro das pessoas, e em particular dos mais velhos, para lhes oferecer um espaço onde podem ser ouvidos, numa altura em que as palavras de ordem são o recolhimento domiciliário e a distância social.”

Nesta recolha de janela em janela, e não só, Tiago Pereira e a sua equipa têm sido surpreendidos com instantes de pura poesia, inspirados na experiência desta pandemia. Como aquele protagonizado pelo pastor José Madeira - o “Barriga Verde” -, que, junto das suas ovelhas, em Arraiolos, no Alentejo, cantarolou um tema da sua autoria dedicado ao vírus. De porte castiço, com o seu boné e cajado, deu voz às “Décimas ao Vírus”:

"Esta guerra sem soldados/ nem espingardas, nem canhões/ estamos morrendo aos milhões/ e quem foram os culpados? Peço a deus que ponha a mão/ porque o mundo anda sofrendo/, Sabemos que Deus em querendo/ pode dar a salvação./ Morrem presos na prisão/, nos hospitais internados,/ nos lares os reformados/, e nos centros de saúde/ atacando a juventude/, esta guerra sem soldados/. Pedi à Virgem Maria chorando/ e dando suspiros/ para que ela afastasse os vírus/ da maldita pandemia/. Que milagre que seria/ não haver constipações/, nem febre nem infecções/. Não quero ver ninguém sofrer/, vamos a guerra vencer/, sem espingardas/, nem canhões/. Vão morrendo portugueses/ e na América, americanos/, na Itália, italianos/, e na China morrem chineses/, na França morrem franceses/, na Rússia e nas mais nações/. São filhos de pais e ‘irmões’/. Com uma doença estranha/, os espanhóis morrem em Espanha/. Estamos morrendo aos milhões/, vivemos em Quarentena./ Temos [em] luto o país/, o primeiro Ministro diz que isolados vale a pena/, há alguém que nos condena/, temos sido condenados/, ficando desempregados/, deixando o país mais pobre/, já vi que ninguém descobre.../e quem foram os culpados?"

A resposta a esta pergunta cantada pelo pastor José fica ainda sem resposta. Mas não sem eco. Tal como a maioria dos profissionais da cultura, o realizador e documentarista Tiago Pereira, premiado em 2006 no festival Doc Lisboa pelo documentário “Onze Burros Caem de Estômago Vazio", também se viu em apuros logo em março, quando foi obrigado ao confinamento e viu cancelados abruptamente todos os projetos que tinha agendados para este ano. “Com uma mão atrás e outra à frente, temos conseguido colmatar as dificuldades. Tive de recorrer à moratória do Banco para a renda da casa. Já sabemos que a cultura não tem dinheiro, e muito menos durante uma pandemia. E sei de muita gente desta área e da restauração a passar mal”, desabafa.

Há quase uma década a palmilhar o país de uma ponta a outra, para registar com a sua câmara as tradições e as sonoridades da música popular portuguesa - na linha do que gravou o etnomusicólogo francês Michel Giacometti nos anos 60, em Portugal -, Tiago Pereira tem-se cruzado com inúmeras personagens com muitos anos de vida que parecem saídas do cinema, de um livro, de um poema.

Como é o caso do casal Vitória Mendes e Carlos Caíta, de Elvas, que cantaram o tema "Saias do Vírus", ao ritmo das palmas, e com uma letra malandra e desafiadora da maleita do momento. E que reza assim:

"Ó vírus dum cabrão/ dá-me cabo da cabeça./ Olhó vírus dum cabrão./ Dá-me cabo da cabeça./ Já ando com 'cuagufa',/ com medo que ele apareça,/ já ando com coagufa com medo que ele apareça./ Já ando com cuagufa com medo que ele apareça/. Olhó vírus dum cabrão dá-me cabo da cabeça./"

Tiago Pereira, conhecido há muito como ‘o realizador das velhinhas’, com o seu projeto “A Música Portuguesa a Gostar dela Própria”, que já foi série da RTP2, tem agora um site com um mapa interativo nacional que inclui 5.365 vídeos através dos quais viajamos virtualmente pelo continente e ilhas, enquanto descobrimos o que o povo ainda canta e as memórias orais que atravessam gerações.

“Vivemos num tempo acelerado, tudo é consumido e ultrapassado, a informação vem de todos os lados, vemos cada vez mais depressa e andamos esquecidos de ouvir e de escutar. Pergunto-me muitas vezes: porque será que do Rio Tejo para baixo, no meio das conversas, para chamar a atenção do outro, dizemos; “escuta”, enquanto do Rio Tejo para cima dizemos; “olha”?”

A esta pergunta, o realizador reflete sobre o facto de se andar cada vez mais a escutar menos, seja no Norte ou no Sul. E a perder as memórias do passado.

“A memória deixou de ser trabalhada, qualquer lapso de memória pode ser resolvido com uma consulta ao motor de busca mais próximo. São já poucos os que ainda se lembram de cantigas, provérbios e adivinhas de cor. E os que ainda se lembram estão em vias de extinção. É o fim de uma era, em que se trabalhava no campo e se cantava. A era da tradição oral está a terminar, agora entramos na era da tradição digital. O que “A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria Vem Fazendo”, desde há quase dez anos, é documentar essa transição, que é lenta e complexa. [Andamos] à procura das pessoas que ainda cantam para si próprias, que utilizam a memória e a tradição oral para manter vivas práticas e saberes ancestrais. Por isso, gravamos tudo: canções, rezas, responsos, benzeduras, ofícios, saber fazer, danças, músicas, histórias de vida. Essa valorização é muito importante, gravamos patrimónios humanos.”

Por tudo isto, o projeto de Tiago Pereira vai continuar para o ano, à janela, à porta, nos quintais ou onde der e seja seguro, para preservar a música tradicional portuguesa e a cultura e para que os mais velhos continuem a gostar de si próprios. Há muito futuro para a memória que está lá à frente, na terra seguinte por onde ele passar. Porque Tiago é um verdadeiro garimpeiro que, com a sua equipa, recolhe o ouro que sai da boca dos nossos anciões. Para que essas suas riquezas e saberes não morram com eles.