20.11.20

Operador rodoviário admite recrutar motoristas na Venezuela e Cabo Verde

Carlos Cipriano, in Público on-line

Recurso à mão de obra estrangeira é justificada pelos baixos custos a que os operadores rodoviários são forçados a trabalhar para ganharem os concursos públicos.

“É uma vergonha! Como é que um país organiza concursos de prestação de serviços públicos que nem sequer são compatíveis com os salários baixos que já são praticados hoje, e é preciso ir buscar imigrantes a países que estão na miséria?”.

José Manuel Viegas, especialista em Transportes, não disfarçou a sua indignação quando ouviu o primeiro-secretário da Autoridade Metropolitana do Porto (AMP), Mário Rui Soares, contar que um operador rodoviário lhe tinha dito que “se ganhar o concurso, ou se for subcontratado, vai buscar imigrantes à Venezuela e Cabo Verde e dar-lhes formação para minorar a falta de mão-de-obra e atenuar a décalage financeira que se pratica no país relativamente aos custos”.

Este episódio ocorreu a 4 de Novembro no congresso da ADFERSIT (Associação para a Defesa dos Sistemas Integrados de Transportes) num painel onde se discutiu a importância dos transportes públicos na mobilidade sustentável.

Mas, ciente que a sustentabilidade não deve ser só ambiental, o moderador José Manuel Viegas insistiu na questão: “quando, para termos autocarros a funcionar, é preciso ir buscar imigrantes à Venezuela, não estamos a ser sustentáveis”. Por isso, instou os operadores dos transportes colectivos regulados a falarem com as autoridades que lançam os concursos públicos “levando uma agenda a favor da sustentabilidade que inclua a dignidade humana”.

Depois do congresso, o PÚBLICO falou com o responsável da AMP, Mário Rui Soares, que confirmou a história do operador que tenciona “importar” imigrantes. Trata-se de um concorrente português que está bem colocado para ganhar um dos cinco lotes postos a concurso, mas que Mário Rui Soares não quer divulgar porque lhe foi pedida reserva.

No entanto, este responsável não acompanha a indignação que o assunto provocou, explicando que a intenção do referido operador é essencialmente colmatar a falta de mão-de-obra que existe na contratação de motoristas.

“Se recrutarem motoristas na Venezuela e em Cabo Verde e lhes derem formação, não vejo problema porque até a própria língua é parecida com o português”, disse. De resto, disse, ele próprio constatou em viagem recente a Amesterdão, que na Holanda grande parte dos motoristas dos transportes públicos são estrangeiros.

Além disso, Mário Rui Soares diz que os operadores terão de respeitar as convenções colectivas de trabalho, independentemente de os seus empregados serem ou não portugueses. E que o próprio caderno de encargos prevê que os novos operadores, se necessitarem de motoristas, têm preferencialmente de os recrutar nas empresas dos antigos operadores.

O primeiro-secretário da AMP prefere colocar a ênfase na forma como o concurso público foi lançado e no sucesso que já teve, pois concorreram 40 empresas, das quais metade são espanholas. A região do Grande Porto foi dividida em cinco lotes às quais os operadores puderam concorrer, sendo certo que nenhum poderá ficar com mais do que um lote. Desta forma, garante-se que haverá uma empresa ou consórcio diferente para cada lote.

Em rigor, o concurso não se trata de uma concessão, mas sim de uma compra de serviços em que os operadores serão pagos pelo número de quilómetros percorridos acrescido de um prémio que consiste em 25% da receita obtida (os outros 75% vão para a AMP). Este prémio destina-se a estimular a vocação comercial dos operadores para que estes não se limitem a efectuar os quilómetros acordados sem qualquer preocupação com a procura e as receitas.

Mário Rui Soares destaca que nos cinco lotes em torno do Porto se reduziram o número de linhas de autocarros de 630 para 428, eliminando-se redundâncias (havia linhas com mais de um operador) e aumentando a eficiência.
"Dumping social"

Pires da Fonseca, CEO da Arriva, que opera essencialmente no Norte do país, disse ao PÚBLICO que a sua empresa abandonou todos os concursos em que existe risco de procura porque, no contexto actual de incerteza provocado pela pandemia, ninguém consegue prever o comportamento das populações neste negócio.

As empresas que estão melhor colocadas para ganharem o concurso ofereceram preços ao quilómetro entre 1,10 a 1,42 euros, um valor bastante mais baixo do que os 1,70 euros de referência do caderno de encargos.

“Com este valor por quilómetro ninguém pode pagar salários decentes”, diz Pires da Fonseca, constatando que “a pressão dos custos operacionais está precisamente nos salários”. O administrador diz que “trazer trabalho escravo para os transportes não é propriamente um exemplo de sustentabilidade” e receia que “estejam a pôr os transportes públicos ao nível do da apanha da azeitona ou dos morangos, com a importação de mão-de-obra barata”.

Opinião partilhada por José Manuel Viegas, que diz que a AMP “tem de criar condições para reduzir o dumping social”, impondo, por exemplo, que os operadores a concurso não paguem salários abaixo de um determinado valor.
Espanhóis lideram na lista de preferências do júri

Os resultados provisórios do concurso colocam como vencedores os consórcios espanhóis Nex Continental Holding e Vectalia. O primeiro ficou em primeiro lugar em dois lotes e o segundo em três lotes. Mas como nenhum concorrente pode ficar com mais do que um lote, haverá lugar para mais operadores, incluindo-se aqui os portugueses Sequeira, Lucas, Venturas & Cª Lda, Bus On Tour Lda e Empresa de Viação Barraquense Lda, para além do grupo espanhol Xerpa Mobility.

Ainda assim, é possível que outras empresas portuguesas possam vir a ser subcontratadas pelos grupos vencedores para operar em determinadas áreas.