25.11.20

“Há muita consciência nos jovens sobre o racismo e isso vai forçar mudanças”

Joana Gorjão Henriques, in Público on-line

Pela primeira vez o Conselho Nacional de Educação emitiu uma recomendação em que “explicitamente” se referenciam “as questões da cidadania anti-racista”. Entrevista com Isabel Menezes, uma das autoras do relatório que propõe 12 medidas para combater o racismo no ensino.

O Conselho Nacional de Educação emitiu uma Recomendação sobre Cidadania e Educação Antirracista onde elencou 12 medidas que devem ser seguidas, como a recolha de dados étnico-raciais no ensino ou o reforço de políticas públicas anti-racistas que combatam as desigualdades e promovam o sucesso escolar.

Elaborado por Isabel Menezes, professora do departamento de Ciências da Educação da Universidade do Porto, Joana Brocardo, professora coordenadora da Escola Superior de Educação do Politécnico de Setúbal, e Luísa Malhó, em representação do Alto Comissariado para as Migrações, o documento refere que o racismo é uma ameaça “à qualidade da vida democrática” e aos “seus fundamentos essenciais: liberdade, pluralismo, igualdade”. A recomendação foi pedida pela presidente do CNE, Maria Emília Brederode Santos, há cerca de um ano.

No documento citam o historiador norte-americano Ibram X. Kendi: “O mito pós-racial de que falar de raça constitui racismo, ou de que se pararmos de nos identificar através da raça, o racismo miraculosamente desaparece. (...) falha em reconhecer que, se deixarmos de usar categorias raciais, não seremos capazes de identificar a desigualdade racial.”

Falámos com uma das autoras, Isabel Menezes, sobre as 12 medidas como a recolha de dados sobre raça e etnia para caracterização de alunos dos vários níveis e sistemas de ensino; a discussão sobre a expansão portuguesa e o colonialismo que integre “pontos de vista complexos e diversos incluindo o sofrimento e a resistência e as sistemáticas violações de direitos humanos nos territórios ocupados”; a promoção de um programa nacional de educação anti-racista e para os direitos humanos; a contratação de profissionais especializados na escola, que possam apoiar estratégias de inclusão e educação anti-racista; a realização a nível nacional de um programa de formação contínua de educadores, professores e funcionários ou a redução dos riscos de encaminhamento de crianças e jovens para vias que limitem o acesso à progressão escolar.

Qual foi o ponto de partida com que iniciaram este trabalho?
A ideia de que temos um problema de racismo que não é só português, mas que é também português. A ideia de que — e as audições e a investigação mostram isso — esse é muitas vezes um problema ocultado pelo facto de não haver recolha de dados sobre raça no sistema de ensino. Claro que sabemos que a raça não existe — no início da recomendação se justifica porque é que vale a pena continuar a falar de raça mesmo que não tenha existência biológica. Esse era o ponto de partida, tentar perceber como é que isso se manifestava em termos do sistema de ensino e como é que a educação pode ter aqui um papel e quais eram os aspectos em que essa questão era mais importante. Um dos aspectos é claramente a recolha de dados sobre a raça. Outra tem a ver com as representações da diversidade da população portuguesa e da história dessa diversidade nos manuais escolares ou nos programas ou do branqueamento forçado de toda a gente nos manuais e programas. Outra questão é a história da expansão portuguesa e da forma como os manuais escolares a representam - e portanto a necessidade de dar conta de uma visão diversa e complexa do fenómeno da expansão portuguesa.

Esses problemas traduzem-se em recomendações, com as políticas públicas contra a pobreza e exclusão à cabeça e a tónica de que devem visar explicitamente o combate a discriminação e racismo - assumindo que é mais um factor de exclusão.
Mesmo admitindo que a pobreza e a exclusão são factores de agravamento brutal destas situações, há um problema de racismo em Portugal independentemente das condições sociais. É por isso que é preciso termos dados. Há muita investigação de muita qualidade mas estamos a falar de estudos parcelares desta e daquela realidade. No Conselho há pessoas de muitas áreas e para muitas era difícil perceber como é que aqui não se conseguia fazer um argumento, não havia dados numéricos. A surpresa era como é que numa escola em concreto o director não consegue ter uma indicação sobre isto, não consegue fazer uma observação completa do fenómeno - por exemplo, do insucesso escolar ou do abandono, ou do sucesso, se está ou não associado a questões que têm a ver com raça quando podemos ter essa informação relativamente ao género ou à classe social.

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Sabemos que essa é uma questão não consensual e que houve até o chumbo do INE para a incluir no Censos. Ter recomendação no relatório foi pacífico?
Essa recomendação foi aprovada por unanimidade, mas como está dito: é com base na auto-declaração e de acesso reservado, ou seja, a ideia é reconhecer o quanto isto depende do que as pessoas querem declarar. A formulação reforça a ideia de que é preciso ser cauteloso com o uso destes dados.

Esse cuidado estaria previsto no Censos. Porque é que esta recomendação é tão importante? Que medidas não são possíveis de aplicar se não houver esta recolha?
Não se consegue tomar decisões políticas ou outras se não se tiver informação sobre a forma como os fenómenos estão a ser afectados por estas variáveis. E portanto corremos o risco de estar sempre a falar de hipóteses mas sem nos confrontarmos com os dados em concreto e é isso que torna a questão da recolha da informação sobre raça tão importante, sermos confrontados com os dados e ver se o insucesso ou sucesso se distribui em função da raça ou não, mas o que é um facto é que temos de saber. Este conhecimento é importante para qualquer coisa que se decida fazer a seguir.

Há 12 medidas que abordam questões que vão desde o ensino da História até a fenómenos de discriminação que podem acontecer dentro da escola. Até que ponto as medidas podem ser eficazes sem a consciência dentro das organizações do que é o racismo?
Espero que esta recomendação tenha o efeito de produzir uma discussão pública sobre estas questões. É importante pelo menos a criação de alguma consciência de que isto é um problema que merece a nossa atenção e que tem consequências quotidianas e devemos ter tolerância zero no interior das instituições de ensino do pré-escolar à universidade relativamente a isto. A recomendação deixa isso claro e a esperança é que isto gere alguma consciência.

Esta recomendação dá um passo em frente em relação ao discurso da interculturalidade: reconhece que é necessário haver um papel activo contra o racismo.
Ninguém tem nada contra as perspectivas interculturais mas, mais uma vez, não se pode ocultar que, a par das questões da diversidade cultural, temos uma questão de raça que muitas vezes não tem a ver com uma questão cultural no sentido estrito da expressão. A preocupação com a educação intercultural deve existir mas isso não quer dizer que substitua uma abordagem e o reconhecimento da importância de uma educação anti-racista que reconhece as expressões das desigualdades em função da raça. Estas desigualdades não se resolvem dizendo apenas que estamos perante um fenómeno de diversidade cultural. Não temos que fazer escolhas e dizer que a educação para a cidadania cobre tudo, incluindo a educação anti-racista; não, a multiplicidade destas educações ajuda a visibilizar a multiplicidade das discriminações e isso é importante.

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Há uma ênfase em ter representantes, mediadores, profissionais que reflictam diversidade do país. Esta é uma lacuna que existe neste tipo de programas?
Sabemos que isto é um problema. Termos profissionais que representam a diversidade é de extrema importância - até por causa da ideia que está defendida na recomendação: a criação de uma relação de confiança com as comunidades, para os próprios miúdos, o ver ali alguém que está ali e é um interlocutor. Temos pessoas a dizer que na minha escola não se usa a palavra ‘p’ porque a directora da escola é afrodescendente e isso é importantíssimo.

Não chegam ao ponto de exigir cotas.
Não, até porque se sugeríssemos cotas ia haver alguém a dizer que a política de contratação de profissionais não podia ser feita com base em cotas. O que não quer dizer que elas não possam fazer sentido. Porque a questão da representatividade está aí, pelo menos ao nível de interface com a comunidade.

Esta é a primeira recomendação anti-racista do Conselho Nacional da Educação?
Há outras recomendações do Conselho relativas a questões de cidadania. O que há de novo é explicitamente referenciarem-se as questões da cidadania anti-racista, é esse o foco. Desse ponto de vista diria que é a primeira.

Há alguma escola que tenha posto em prática algum destes 12 pontos e que sirva de modelo?
Há certamente escolas de Norte a Sul do país em que estas questões são abordadas magnificamente por professores. Um dos problemas na Educação é que há pessoas que fazem coisas fabulosas e dão pouco a conhecê-lo em termos públicos. Mas tenho a certeza que se começássemos em Bragança e acabássemos em Lagos íamos encontrar imensos exemplos interessantes. Isso não tem é sido configurado numa política pública explicitamente anti-racista. O que falta é uma política que visibilize, ajude a corporizar estas coisas.

Quão urgente acha que é a aplicação destas recomendações?
Acredito que estamos num momento em que há a consciência destas questões e que as recomendações serão acatadas. Há muita consciência nos jovens sobre o racismo e isso vai forçar as mudanças. Tendemos a dizer que os jovens são pouco preocupados, mas contrariaram-nos o ano todo relativamente às questões ambientais e do racismo. Também assistimos, e isso torna tudo mais urgente, ao crescimento de fenómenos racistas, de discriminação e de exclusão. Esses fenómenos que se tornam mais abertos também precisam de ser abertamente confrontados.

Quanto tempo é preciso para aplicar estas 12 medidas?
Nalguns casos as medidas são de fácil aplicação. Por exemplo, na formação dos profissionais de educação nesta área, umas das coisas que é sugerida é deve contar para a progressão na carreira - isto é relativamente simples, é uma questão de reconhecimento. Já há comissões que avaliam os manuais, é uma questão de perceberem que a questão da história das comunidades ciganas, por exemplo, é importante estar. Claro que processos de transformação social desta natureza não se desenvolvem em 15 dias. Algumas medidas são mais exigentes em termos de implementação mas noutros casos trata-se de reconhecer o que já existe no terreno.