25.11.20

“Tirarem-nos o fim-de-semana foi a mesma coisa que nos matar”

Natália Faria (texto) e Adriano Miranda (fotografias), in Público on-line

A crise pandémica está a provocar muitos danos colaterais na restauração. O desemprego, que avança tão depressa como o coronavírus, ameaça chegar aos 100 mil trabalhadores, nos cálculos dos representantes do sector. O protesto assume a forma de manifestação nacional, esta quarta-feira, em Lisboa.

Pedro Lobo anda há uma semana a tentar ganhar coragem para despedir três dos seus 11 trabalhadores. “São pessoas que precisam do ordenado para viver, mas não tenho mesmo hipótese”, desculpa-se. Nuno Portela tem aguentado o prejuízo de manter as portas do seu bar abertas mesmo sem clientes “só para não ter de ficar em casa a dar em doido”. Pedro Oliveira diz que só tem dinheiro para servir almoços e jantares até ao dia 1 de Janeiro. “Se calhar estou só a adiar o enterro”, cogita. Os representantes do sector da restauração, um dos mais violentamente fustigados pela crise pandémica, vão manifestar-se esta quarta-feira, a partir das 15h30, frente à Assembleia da República, num protesto organizado pelo movimento “Sobreviver a Pão e Água”, e que será, para muitos, uma derradeira tentativa de reclamar “apoios robustos” por parte do Governo. Sem isso, o remédio será pespegar definitivamente a placa “Encerrado” nas portas.

A crise já terá mandado cerca de 40 mil trabalhadores do sector para o desemprego, segundo a PRO.VAR - Associação Nacional de Restaurantes. “Pelas contas e pelos inquéritos que temos vindo a fazer, chegaremos ao início do próximo ano acima dos 100 mil desempregados”, calcula Daniel Serrão, o presidente da associação, cujos telefones não têm parado de tocar com “empresários desesperados” do outro lado. “Muitos foram aguentando ao longo destes quase nove meses pensando que teriam alguma oportunidade de facturar neste último trimestre, mas agora, com as novas medidas, perderam qualquer tipo de esperança. O desespero é imenso. Muitos já só pedem ajuda por não saberem como comunicar aos trabalhadores que vão fechar”, relata.

Podia muito bem ter sido o caso de Pedro Lobo, 39 anos, proprietário do restaurante Adamastor, no centro de Aveiro, que emprega 11 funcionários. “Não vou ter hipótese de aguentar esta estrutura. Tirarem-nos o fim-de-semana foi a mesma coisa que nos matar”, explica, para justificar a decisão recente de despedir três funcionários. “Ando há uma semana a tentar ganhar coragem para falar com eles. Isto tira-me o sono, não consigo pensar noutra coisa”, desabafa, num dos cantos do restaurante onde, apesar de ser hora de almoço, tem as dezenas de mesas vazias. “É assim praticamente todos os dias. A quebra na facturação anda nos 95%”, descreve.

Num normal fim-de-semana de Novembro, Pedro servia “entre 100 a 150 refeições” por dia. “Sabe quantas refeições servi no último fim-de-semana? Nenhuma”, compara o empresário. Ao lado, o cozinheiro Carlos Dias confirma a ausência de torvelinho. “Fazíamos três e quatro quilos de arroz por dia e agora fazemos meio quilo e, às vezes, nem esse meio quilo sai. Custa muito ver que, ao final da noite, a panela da sopa continua cheia.”

Do que ele gosta é de preparar marisco ("é quando tenho mais confiança em mim") mas agora é cada vez mais raro ver os búzios, as ameijoas e o camarão a sair das vitrinas. “Se perder o emprego, não vai ser fácil arranjar trabalho novamente no sector”, rumina, consciente de que que nem o facto de o restaurante ter adoptado o serviço de take-away e de entrega de refeições em casa, para mitigar os efeitos da obrigatoriedade de encerrar às 13h00, está a ajudar ao negócio.

“Disponibilizei um funcionário para entregar as refeições, fiz publicidade nas redes sociais”, frisa Pedro Lobo, “mas as pessoas simplesmente não têm esse hábito”. Com uma despesa média mensal a rondar os 20 mil euros e a facturação a rondar os nove mil, o empresário diz-se numa “situação dramática”. “Tenho pessoas comigo há 15 anos. O que é que eu vou fazer?!”.

A declaração de impotência, que já motivou várias manifestações em diferentes cidades do país, ouve-se porta-sim-porta sim nas ruas que desaguam na Praça do Peixe, em Aveiro, pejadas de bares e restaurantes. O Governo tem-se desdobrado em anúncios de apoio ao sector, mas, algumas passadas mais à frente, Pedro Oliveira, dono do “Tasca do Sal” exaspera-se quando recorda algumas das promessas feitas. “Como é que se compreende que um primeiro-ministro nos venha dizer, como disse no sábado, que o prazo de pagamento da TSU [Taxa Social Única] vai ser prolongado, quando a data de pagamento tinha expirado na véspera?! E ele sabe que, quem não tivesse pago, já tinha uma coima de 127 euros no dia em que fez o anúncio. Isso é mentir às pessoas”, sustenta.

Numa altura em que passou de servir “entre 50 a 60 refeições diárias para uma média de cinco”, Pedro Oliveira diz que conseguiu até agora suportar as despesas sem recorrer a moratórias e sem despedir nenhum dos seus cinco funcionários. Mas hesita em candidatar-se à promessa de apoio de 20% sobre a quebra da facturação. “Desde logo, darem 20% da quebra média de facturação face à média de um ano em que estivemos fechados 11 fins-de-semana, é ridículo. E, se a contrapartida for que não posso despedir ninguém nem recorrer ao lay-off, provavelmente não o farei, porque essa é uma garantia que não posso dar”, diz.

Neste momento, “a clientela não justifica nem metade do pessoal”. E não é só por causa das restrições horárias nem pelo facto de as mesas terem sido reduzidas a metade por força da obrigatoriedade de manter o distanciamento entre comensais. “Em Wuhan, que é uma cidade com nove milhões de habitantes, os bares, as discotecas e os restaurantes estavam a trabalhar, na noite de sexta para sábado. Aqui, o Governo está a meter medo às pessoas. E as que saem para os restaurantes são intimidadas pela polícia”, critica, contando que, naquela mesma noite, a polícia fiscalizou os restaurantes da zona e autuou alguns proprietários que continuavam com gente dentro depois das 22h30, ao mesmo tempo que identificava os clientes. “Isso é intimidatório e inconstitucional”.

Já com o pagamento dos salários e dos subsídios de Natal processado, este empresário diz-se capaz de chegar até ao fim do ano sem dívidas acumuladas. “Paguei tudo a toda a gente, inclusive ao Estado”. E em Janeiro? “Se tiver que chegar ao ponto de ter de começar a reinvestir, é melhor fechar. Quando a empresa não se paga a si própria, mantê-la aberta é como guardar um cadáver.”

No caso de Marcos Ladeira, que aos 21 anos é gerente de um restaurante, o que a crise pandémica fez, além de lhe ter aguçado o medo imediato de perder o emprego e com ele o salário, foi adiar os projectos de arriscar sair de casa dos pais e estabelecer-se por contra própria. “Com a situação que está criada, e sem saber onde vou estar em Janeiro, fiquei muito mais longe das minhas metas”, entristece-se.

Está Marcos sem rodopio de clientes, logo, sem regateio a fazer com fornecedores e, algumas portas à frente, noutro restaurante da zona, José Alves com a testa cheia de vincos. “Se formos todos para o fundo do desemprego é mais uma despesa para o Estado”, cogita, alisando a camisa branca. Em 64 anos de vida, passou 50 a servir às mesas. Agora está “saturado” de esperar por clientes que nunca chegam. “Os dias vão de fraco a fraquinho. E os dias parados custam mais, cansam mais”, relata, convencido de que, se o Estado não injectar dinheiro nas empresas do sector, esperam-no dias de maior agonia. “Vou ter que pegar na enxada que está a um canto lá em casa e começar a cavar a terra. Se a casa fechar, vai ser impossível voltar a arranjar trabalho neste sector”, preocupa-se, dizendo que o dinheiro que tem “posto de lado dá para ir desenrascando, mas não por muito tempo.”

Fechar um restaurante, ainda que por apenas alguns períodos do dia, tem um efeito imediato nos milhares de funcionários que raramente ocorre a quem está de fora. “Dantes, comia aqui: almoço, lanche e jantar. Quando me reduziram o horário, passei a ter de comprar comida”, explica Rivânia Barata, que serve às mesas do Rebaldaria. Claro que a redução do horário para metade foi acompanhada de um corte salarial, também para metade. “Ficou tudo muito mais complicado”, diz, apesar de assumir com sorte porque acumula o emprego com o último ano de uma licenciatura na área da informática e tem as despesas mais pesadas asseguradas pela família.

A proprietária do restaurante, Ana Peres, diz que reduzir o horário aos quatro funcionários foi a única forma de encarar as quebras “de 70% a 80% na facturação”. “Com isso consegui não despedir ninguém”, explica, para acrescentar que, exceptuada a comparticipação dos salários no regime simplificado de lay-off , que vigorou durante o primeiro período da pandemia, não lhe entrou pela porta nem mais um euro dos 1,1 mil milhões de euros dos apoios já disponibilizados ou anunciados para a restauração. “Durante os últimos meses contraí dívidas à Segurança Social e às Finanças e, ao limitar os apoios a quem não tem dívidas, o Governo deixa de fora quem está a ter mais dificuldades em aguentar o negócio”, acusa.

Na óptica do presidente da PRO.VAR, Daniel Serrão, fazer depender os apoios da existência de capitais próprios positivos, é ignorar a realidade de um sector tão fortemente dependente de mão-de-obra intensiva. “Na restauração, qualquer redução da actividade económica tem logo um impacto enorme nas contas. O Governo alega que essa condição resulta de uma imposição da União Europeia, mas então a TAP não tinha capitais próprios negativos?! Por que é que não se pede a mesma excepção para a restauração, que é também um sector estratégico e de interesse nacional?”.

No cenário actual, e numa altura em que diz estar a pagar os duodécimos das rendas mensais de 1500 euros que deve ao senhorio e cujo pagamento beneficiou de uma moratória nos meses em que foi obrigada a fechar, Ana Peres conclui que os apoios concedidos mais não farão do que adiar o estertor. “Estamos quase só a falar de empréstimos ou adiamentos que vão ter que ser todos pagos mais à frente. E, deste modo, os pequenos empresários que não caírem agora vão cair daqui a dois anos, porque a retoma desta crise vai ser muito lenta”, sustenta.

“Estes apoios parecem todos muito bonitos mas limitam-se a adiar os problemas com a barriga, porque o que não pagarmos agora vamos ter de pagar depois”, concorda Nuno Portela, proprietário de um bar cuja facturação “desceu 90%” desde que deixou de servir bebidas após as 22h00 em vez das habituais 4h00 da manhã. “A autarquia foi razoável e até nos isentou de todas as taxas de licenças de esplanadas e toldos até ao final do ano, mas isso não chega”. Por enquanto, o remédio vai ser fechar temporariamente, aproveitando para dar férias ao funcionário. “Numa altura em que a facturação não dá para pagar as despesas fixas, já nem se justificava ele estar a trabalhar, aliás, se eu desligasse agora o [botão] geral da electricidade e fechasse a torneira da água perdia menos dinheiro. Mas, pronto, ele é nosso funcionário e a verdade é que estar fechado em casa é pior para a minha saúde mental”, ironiza, consciente de que, “sem apoios a fundo perdido”, a almofada financeira de que dispõe não chega até Maio que é quando prevê que a situação possa “começar a melhorar um bocadinho”.

Até lá, antevê o presidente da PRO.VAR, muitas empresas fecharão portas que só dificilmente voltarão a abrir. “O Governo adoptou uma estratégia muito sólida para afastar as pessoas dos restaurantes. Se nesta altura 20% dos restaurantes já estão encerrados, com mais esta decisão catastrófica que os impede de facturar na altura do Natal, os restaurantes que estão a ponderar encerrar, definitiva ou