André Moreira, in Visão
Nenhuma ideologia consegue sobreviver se não tiver nada para oferecer aos mais jovens, defende Jack Shenker, jornalista, nesta entrevista à VISÃODurante algum tempo dividiu-se entre Londres e o Egito, onde foi correspondente do jornal britânico The Guardian. Agora, Jack Shenker, 35 anos, vive na capital inglesa. O centro financeiro de um país em crise, económica e política, acentuada pela pandemia, mas ainda com feridas abertas por causa do Brexit. Cansado de ver a comunicação social inglesa falar apenas dos sintomas dessa crise, através do que se passa em Westminster, decidiu seguir outro caminho e procurar aquilo que considera ser a raiz dos problemas, no livro Já Estão a Prestar Atenção: Como se fará a política do amanhã (Bertrand, 312 págs., €17,70), recentemente publicado em Portugal.
Que caminho fez para tentar descobrir aquilo que considera ser a verdadeira razão da crise da política?
Se quisermos entender porque a nossa política está em crise, precisamos de ir onde estão as causas dessa crise e não onde estão os sintomas. Os sintomas estão em Westminster, nas instituições, nos governos. Podemos encontrá-los em toda essa confusão, nos modelos constitucionais, nas eleições gerais, nos diferentes primeiros-ministros e em todos os argumentos sobre o Brexit. Mas, para mim, a verdadeira razão está no facto de o sistema económico ter dominado a maior parte do mundo nos últimos 30, 40 anos, no Reino Unido, em Portugal, a norte do globo, a sul… Em 2008, isso implodiu e, ainda assim, a política tendeu a prosseguir como habitualmente. Mesmo que, no terreno, para as pessoas normais, já nada fosse normal. Por esse motivo, a política reanimou-se com diferentes possibilidades: algumas muito entusiasmantes, outras muito assustadoras. Da esquerda radical à direita radical, que pareciam muito além dos limites, de repente, começam a surgir de novo na política. Quando comecei a minha jornada para perceber o que estava a acontecer no terreno, o que encontrei foi: pessoas, frequentemente jovens, que não estão abrangidas pelas regras antigas, a tentarem tirar proveito deste momento para se organizarem e lutarem por alternativas.
Diz que muitos consideram que os jovens não se interessam pela política, mas, na realidade, observou o contrário?
Absolutamente! As pessoas, incluindo os jovens, são antipolíticos, mas isso não significa que sejam antipolítica. Apenas estão cansadas das velhas instituições. Para a maioria das pessoas, isso não é política. Política é, pelo contrário, tudo o que acontece no dia a dia, na vizinhança. No livro, senti que o importante era tentar mostrar porque as pessoas estão cansadas da política de Westminster. Isso não significa que elas estejam envolvidas na política, mas, na realidade, os jovens, particularmente no Reino Unido, são os mais políticos porque conseguem ver os problemas com os seus próprios olhos. Eles vivem-nos, a cada dia.
Em 100 anos, temos a primeira geração que ganha menos do que os seus pais. Que leitura faz sobre estes tempos?
Acho que o facto de termos a primeira geração que, em 100 anos, vai acabar mais pobre do que os seus pais mostra que o statu quo é intolerável. A legitimidade do modelo económico antigo não foi baseada numa paixão particular por esta ideologia. Os partidos políticos apoiavam estas medidas e acabavam por voltar a votar nelas porque ofereciam tranquilidade e competência. Atualmente, os partidos não conseguem continuar a oferecer isso. Como vários autores britânicos já mencionaram, nenhuma ideologia consegue sobreviver, se não tiver nada para oferecer aos mais jovens.
As pessoas, incluindo os jovens, são antipolíticos, mas isso não significa que sejam antipolítica. Apenas estão cansadas das velhas instituições
Acha que, além deste “novo normal” originado pela pandemia, podemos dizer que haverá um “novo normal” no mundo político?
O “novo normal” não está estabelecido. Um exemplo do “novo normal” é o que acontece num país como Portugal, que tem um governo de centro-esquerda apoiado por um movimento político mais radical. De momento, o “novo normal” é a “imprevisibilidade”. Todos somos agentes políticos. Não somos apenas consumidores passivos. Não somos apenas espectadores a assistir à política na televisão. Nós temos a capacidade de mudar as coisas.
Depois das entrevistas que realizou para o seu livro, consegue traçar um perfil dos indivíduos que votaram em partidos de extrema-esquerda e de extrema-direita?
Sim. Muitas das pessoas que entrevistei, bem como muitos dos movimentos e organizações que segui, tendem a estar mais à esquerda, em parte porque são mais jovens. Eles não têm as suas próprias casas, não têm grande rendimento… Isso não é confortável e, como consequência, tendem a posicionar-se mais à esquerda. No livro menciono uma cidade perto de Londres, Tilbury, onde ficam as docas e onde vivem centenas de milhares de pessoas. Era uma cidade industrial que costumava votar no Partido Trabalhista e, agora, como acontece em muitas zonas industriais de todo o mundo, o número de pessoas lá empregadas é muito menor, a comunidade sente-se posta de parte em relação a Londres. Tilbury tornou-se uma das principais apoiantes do Brexit em todo o país, com um grande número de cidadãos a favor da saída da União Europeia.
Tenta justificar as escolhas e compreender o voto das pessoas, mesmo que sejam de extrema-direita?
Exato. Mas eu não usaria a palavra “justificar” porque acho que isso pode significar que eu apoio essas ideologias. Tento compreender e dar voz a estas pessoas. As opiniões sobre o referendo sobre a saída da União Europeia tendem a ser muito liberais, especialmente em Londres. Além disso, têm uma grande cobertura mediática que tende a dizer: “Estas pessoas são idiotas, não têm formação, são velhas e racistas.” Mas, na verdade, é mais complicado do que isso. Uma das coisas que retive das conversas que realizei foi que uma das razões pelas quais a extrema-direita e o Brexit ganharam muitos apoiantes em comunidades como estas é porque o centro-esquerda não tem nada a dizer a estas pessoas. Nos últimos anos, os cidadãos de Tilbury têm assistido ao crescimento de Londres, e o Partido Trabalhista não conseguiu explicar aos cidadãos o porquê de uns estarem a empobrecer e outros a enriquecer. Foi a extrema-direita que, ao longo de 20 anos, tentou explicar o que se passava. Partidos como o Partido Nacional Britânico, a Frente Nacional Britânica e, mais recentemente, a English Defence League, chegaram e disseram: “A razão pela qual os vossos empregos são tão instáveis e a vida tem-se tornado mais complicada é porque há pessoas de raça negra que querem roubar-vos o emprego.” Isto é mentira, mas foi a justificação que encontraram. Se o centro-liberal não começar a reconhecer que falhou na altura em que estava no poder, nunca irá conseguir combater a extrema-direita e os Boris Johnson deste mundo.
Há cada vez mais movimentos e novos partidos a surgirem. O que pode isso significar para a própria democracia?
A nossa democracia não está a transmitir corretamente a perceção da população e isso reflete-se na maneira como estamos a ser governados. Existe uma falta de ligação entre o modo como as pessoas entendem a política e a sentem. Julgo que, atualmente, este é um pensamento partilhado por muitos em todo o mundo e que é por isso que as pessoas devem direcionar a sua atenção para diferentes tipos de organização política. É o caso dos novos sindicatos, movimentos estudantis, movimentos climáticos, ocupação de espaços para protestar a favor da igualdade…
Esses novos sindicatos e movimentos, que surgem depois de “sussurros” entre funcionários de grandes empresas, como a McDonald’s, como escreve no livro, serão também uma nova forma de fazer política? As pessoas já não se sentem protegidas pelos sindicatos tradicionais?
Boa pergunta, até porque vai ao encontro de uma das coisas que mais estão a afetar a política no Reino Unido. O que aconteceu foi que muitos dos sindicatos tradicionais tornaram-se mais pequenos e, consequentemente, mais fracos e pobres, perderam a sua missão política. Passaram a ser sindicatos de serviço: pagas uma subscrição mensal e tens acesso a uma revista e a um desconto num determinado café. E assim afastaram-se da ideia de serem um movimento político genuíno no meio da classe trabalhadora. As organizações de sindicatos independentes revolucionárias aproveitam-se do facto de muitos trabalhadores não terem nada a perder: “Tu trabalhas no McDonald’s, onde recebes o salário mínimo e onde tens fracas condições de trabalho, organizas uma manifestação no teu local de trabalho e podes perder o teu emprego, mas há outros locais de trabalho, como o Burger King ou a Wetherspoon [cadeia inglesa de pubs]. Todos estes empregos são idênticos e todos eles são inseguros, na medida em que as pessoas podem “saltar” de um para o outro. Não há grande coisa a perder, em arriscar, porque a maioria dos mais jovens não tem capacidade para comprar casa própria, não tem crédito, nem tem aquele receio de perder o emprego e não poder pagar a casa no mês seguinte. Esta insegurança pode tornar-se um catalisador, vai ser cada vez mais notória.
O que pensa sobre a cobertura jornalística da extrema-direita? Devemos falar do que se está a passar e não ignorar o assunto?
Penso muito sobre essa questão. Acho que é importante compreender e questionar as experiências e as motivações políticas desses que estão a dar apoio à extrema-direita. Com muito cuidado e responsabilidade. Mas isso é diferente de oferecer uma plataforma e tempo de antena aos líderes destes movimentos políticos de extrema-direita, que tendem a usá-la para espalhar mensagens de ódio, violência e, de certo modo, angariar apoiantes. No Reino Unido, temos o Tommy Robinson, líder do English Defence League, que é um criminoso condenado, cometeu fraudes, é fascista e, ainda assim, a BBC e a Sky News têm-lhe dado oportunidades para formular as suas crenças políticas. No caso dele, não considero que deva usufruir dessas plataformas. Digo isto porque Tommy Robinson é um supremacista branco. No fundo, temos de nos questionar: “Será que a supremacia branca é uma ideologia que vale a pena debater?” Olhando para a História europeia, já tentámos fazer isso e vimos o que aconteceu quando demos tempo de antena a estes líderes fascistas. Acredito que a resposta a essa questão é dizer “não” aos líderes e “sim” aos seus apoiantes.
Concorda com o conceito de “interesse racial próprio” defendido pelo jornalista David Goodhart e que é mencionado no seu livro?
Este é um dos argumentos de David Goodhart: existe um peso legítimo de interesse pessoal que deve ter lugar na nossa política sem ser admitido como racismo e que isso é diferente de preconceito racial. Eu discordo fortemente de Goodhart, neste aspeto. Não porque não considero que não devemos dar ouvidos e tentar compreender o contexto e as preocupações de uma comunidade predominantemente branca, como acontece, por exemplo, com a comunidade de Tilbury. Acho que o erro é afirmar o avanço legítimo do “interesse racial próprio” branco e que, de certa forma, não envolve um ato de racismo. A razão é porque, simplesmente, o racismo não se trata apenas de preconceito pessoal. O racismo é uma realidade estrutural.
E, por fim, a pergunta que pode valer um milhão de dólares: como, no seu entender, a política vai evoluir?
Há uma citação célebre de Karl Marx que diz que não se deve fornecer livros de receitas aos cozinheiros do futuro, porque qualquer político (ou qualquer visão política) que tenha uma noção muito fixa e rígida de como as coisas devem ser nunca vai ser bem-sucedido em captar a atenção das pessoas. Observamos os próprios políticos como se fôssemos espectadores de um desporto e vemo-los a jogar por nós. Para nós, a única regra é sentar-nos e, muito passivamente, ficar a observar. Isto não tem de ser necessariamente assim. Em primeiro lugar, devemos ouvir aqueles que estão no terreno a modificar a forma de fazer política. E, depois, em segundo lugar, você, leitor, pode ser uma dessas pessoas: você é um agente político e não um observador passivo.