25.11.20

Apartamentos para vítimas fora de perigo. Não fosse isso, T. estaria na rua

Ana Cristina Pereira (texto) e Rui Oliveira (fotografia), in Público on-line

Com a pandemia, recomeçar tornou-se ainda mais difícil para vítimas de violência doméstica que fogem de casa. O país conta pouco mais de duas dezenas de apartamentos adstritos à autonomização, mas há 166 autarquias que se comprometeram a ajudar na habitação e algumas têm bolsas solidárias.

T.mostra os dentes. O ex-namorado partiu-lhos com os punhos. Encostou-lhe uma faca de cozinha ao pescoço. E ela fugiu, deixando o filho, a casa, o emprego. Ainda não recuperou o controlo da sua vida. Está num apartamento de autonomização para vítimas de violência doméstica. Não fosse a existência desta resposta, a pandemia de covid-19 tinha-a atirado à rua.

O apartamento – um dos três cedidos pelo município de Vila Nova de Gaia à União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) – destina-se a vítima em situação de grande vulnerabilidade social. Não podem estar em perigo. “Risco existe sempre”, salienta Ilda Afonso, directora-técnica do Centro de Atendimento e Acompanhamento da UMAR no Porto. “Tem de ser baixo.”

A médica que a assistiu é que accionou a Linha de Emergência Social (144). “Eu só queria fugir. Eu vi a morte à minha frente.” Houve uma queixa, duas semanas numa estrutura de acolhimento de emergência, cinco meses numa casa-abrigo. Negaram-lhe a hipótese de levar o filho, embora o regulamento das casas-abrigo preveja o acolhimento de filhos menores. Se o rapaz de 17 anos a acompanhasse, teria de ficar numa instituição de outra natureza. Deixou-o com a avó.

Pensava que depressa se recomporia, que não tardia a ir buscá-lo. Afinal, já estivera na força aérea, já fora motorista de pesados, trabalhava na logística de uma fábrica. Volvidos três anos, o ex-namorado preserva o modo de vida, foi condenado a uma pena suspensa, e ela continua com a vida desfeita. Até conseguiu trabalhar e arrendar um quarto, mas o valor subia de mês para mês. Começou nos 180 euros, ia nos 270. Naquele apartamento gerido pela UMAR, ia, por fim, a poupar para arranjar os dentes. Não importa que tenham decorrido três anos. “T. está nesta situação por causa da violência de que foi vítima”, salienta Ilda. “O que queremos é que as vítimas tenham hipótese de se reorganizar.”

Umas duas dezenas

O acesso à habitação é um dos grandes obstáculos à reinserção de vítimas de violência doméstica que se põem em fuga. Ilda Afonso faz a defesa de uma rede nacional de apartamentos de autonomização. As casas-abrigo são uma resposta adequada para vítimas em perigo, mas desadequada para as outras. Forçam-nas a uma experiência de vida colectiva com regras muito apertadas. Não acolhem filhos maiores, a menos que sejam deficientes.

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Umas vítimas estão a partir do zero e outras, como diz Daniel Cotrim, da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), “do menos que zero”. “No apartamento ficou a pessoa agressora. E a vítima vai deixar de pagar a prestação ao banco. Vai para uma lista negra. Tão cedo não vai conseguir um empréstimo para comprar uma casa.” Antes da crise de saúde pública, o preço das rendas estava a subir há cinco anos seguidos. “Muitas vezes, sai de casa com os filhos menores, não pode alugar um quarto para ficar com eles.”

A necessidade está identificada há muito pelas organizações que integram a Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica. Consta em estudos e relatórios. Como não existe uma linha de financiamento específica, há que persuadir autarquias a ceder habitação e técnicos de outras estruturas a prestar apoio.

Os apartamentos mais antigos são geridos pelo Clube Soroptimist do Porto. Decorria 2005 quando o município da Trofa lhe disponibilizou dois para autonomizar vítimas acolhidas na casa-abrigo. Seguiram-se outras organizações e outros municípios, cada um com o seu modelo. No ensaiado em Gaia pela UMAR, os apartamentos estão mobilados e as vítimas, que ali podem ficar até dois anos, dispensadas de pagar renda, água e luz.

A pedido da secretária de Estado da Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, a Comissão para a Cidadania e a Igualdade (CIG) está a fazer um levantamento. Para já, identificou cerca de duas dezenas. Além de Gaia e Trofa, há em Arcos de Valdevez, Porto, Matosinhos, Beja, São Miguel, com organizações de solidariedade social e, Aveiro, Albergaria-a-Velha, Arouca, Estarreja, Vagos, Sever do Vouga, Murtosa, Santa Maria da Feira, Oliveira do Bairro, Ílhavo, Braga (3), Amarante, Ponte de lima, Lousada, Cascais, com equipas das próprias autarquias​.

Licença de dez dias para quem tem de mudar de residência

O Governo vai, por fim, avançar com a “licença especial de reestruturação familiar” para vítimas de violência doméstica obrigadas a alterar a sua residência. A medida, aprovada na quinta-feira, dia 12, no Conselho de Ministros, já estava prevista no Orçamento do Estado de 2020.

A proposta foi apresentada pelo PAN no Parlamento e recebeu os votos favoráveis do PS, da Iniciativa Liberal, do CDS-PP, do Chega e do BE e as abstenções do PSD e do PCP na discussão da especialidade do OE. O Governo tinha 180 dias para “promover as diligências necessárias”.

De acordo com a proposta então votada, “são consideradas justificadas, sem direito a remuneração, as faltas dadas ao trabalho, até 10 dias seguidos, por vítimas de violência doméstica, para efeitos de reestruturação familiar, quando sejam obrigadas a abandonar o seu lar”.

Esta licença “confere o direito à atribuição de subsídio, cujo valor, existindo relação laboral, será calculado em função dos dias de faltas, tendo por referência o último salário auferido”. Não havendo relação laboral, “o subsídio é calculado tendo por referência o valor diário do Indexante de Apoio Social (IAS)”.

Atendendo às necessidades, “o número é muito pouco”, avalia Cotrim. Pouco mais de metade das autarquias (166) integra a Rede de Municípios Solidários com Vítimas de Violência Doméstica, isto é, comprometeu-se a encontrar soluções de habitação para vítimas de violência doméstica acolhidas em estruturas de emergência ou casas-abrigo. “Nem todos têm bolsas solidárias. Os que as têm, nem sempre têm fogos disponíveis.” E alguns ainda não alteraram o regulamento que exige cinco anos de residência no concelho a quem requer habitação social.
IHRU está a responder mais

Nenhuma câmara apostou tanto na resposta transitória como Lisboa. Na bolsa solidária, tem 20 apartamentos protocolados com a APAV, 18 com a Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV), 12 com a UMAR, dois com a ILGA-Portugal e dois com a Casa Qui (com quem também protocolou um de autonomizaçao).

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A existência de uma bolsa, em vez de fogos fixos, permite encontrar soluções mais adequadas à dimensão do agregado e zona em que se movimenta. O contrato de arrendamento é assinado pela própria vítima, que paga uma renda simbólica e as outras despesas.

“Isto é um trampolim”, resume Mónica Albuquerque, da AMCV. Vários motivos podem fazer com que uma vítima precise de ficar ali uns meses ou dois ou três anos: aguarda pela transferência do local de trabalho, espera que as crianças terminam o ano lectivo, empenha-se para alcançar um equilíbrio financeiro.

Há, desde 2014, um protocolo entre o Governo e o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU). E esse foi também revisto em 2018. Além das casas-abrigo, as outras estruturas de rede passaram a poder accionar o protocolo, solicitando uma solução em várias partes do país.

Rosa Monteiro nota o efeito: nove fogos em 2014, 16 em 2015, 34 em 2016, 19 em 2017, 55 e 2018, 60 em 2019, 60 em 2019. “Estamos em articulação com a secretaria de Estado da Habitação para fazer este reforço”, afiança.

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A espera é longa. E, nas zonas de maior carência, tudo se pode complicar. Mónica Albuquerque dá o exemplo de uma mulher com filhos a quem já por três o IHRU atribuiu uma casa e por três vezes encontrou a casa ocupada. “Não estamos a falar de pessoas isoladas, de toxicodependentes. Estamos a falar de famílias que precisam de um tecto e que ocupam ilegalmente essas casas.” A pandemia não a deixa optimista. “Penso que isto vai ser cada vez mais recorrente. A fragilidade é cada vez maior. As pessoas perdem o trabalho, deixam de ter dinheiro para a renda.”

Questionada pelo PÚBLICO, Monteiro remete para o Plano de Recuperação e Resiliência. “Estamos a negociar programas que permitam amplificar os apoios”, diz, numa alusão a “alojamento de emergência, que evite que as vítimas tenham de recorrer a alojamento colectivo”, mas também a apoio ao arrendamento, que facilite esta autonomização em segurança”.
Impensável voltar atrás

Se não estivesse no apartamento atribuído à UMAR, T. estaria agora na rua. Preparava pequenos-almoços numa unidade hoteleira e foi dispensada logo em Março. Antes andara a distribuir pão e o dono da padaria não dera conta da sua saída à Segurança Social. No sistema, é como se lá continuasse a trabalhar. Só por isso, está sem protecção no desemprego. E o dinheiro que andava a poupar para arranjar os dentes já foi. “Tem sido horroroso.”

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Quem ouve o seu lamento pergunta-lhe porque não regressa à origem. Se voltasse atrás, estaria perto da mãe e do filho. Podia viver com eles. Valer-se-ia da sua rede de familiares, amigos ou vizinhos para arranjar trabalho. Talvez pudesse até recuperar o antigo emprego. “Não volto para lá. Voltar para lá é procurar a morte. Só posso voltar para lá se aquele homem desaparecer da face da Terra.”

Com T., naquele apartamento, está outra mulher, outra aflição. Antes da pandemia, falavam em arrendar casa juntas. Com a pandemia, o tempo máximo de estadia deixou de contar.

D. viajou de Angola para garantir tratamento ao filho, que tem glaucoma nos dois olhos. Para além do rapaz de dez anos trouxe a filha de 15. A primeira experiência de namoro “correu muito mal”. Num processo de violência, ficaram os três na rua. “Graças a Deus tive o apoio da UMAR que me trouxe para aqui com os meninos.”

Não sabia para onde se virar. Dois filhos, em situação irregular, ninguém que lhe pudesse valer. “Rendas altas. Pedem fiador. Três meses adiantados. E eu não estava e condições. E não estou.” Já trabalhava para um casal de idosos. Mal a pandemia chegou, foi dispensada para evitar o entra-e-sai. Com o vírus à solta, quem sabe quando voltará a arranjar emprego?

Há respostas específicas para vítimas LGBT+

Uma nova geração de apartamento de autonomização está a procurar responder às necessidades da população LGBT+. Um acaba de ser cedido pela Câmara de Matosinhos à Associação Plano i. Outro, a funcionar em Lisboa desde o início do ano, é gerido pela Casa Qui.

O primeiro projecto recebeu o nome de ReAjo e destina-se a jovens entre os 16 e os 25 anos, se estes últimos ainda estiverem a estudar. Nessas idades, a saída de casa é quase sempre o culminar da violência parental, mas também pode acontecer nas relações e intimidade, como explica Rita Paulos, directora-executiva da Casa Qui.

Não raras vezes, quem entra naquele apartamento não sabe cozinhar, tratar da roupa, procurar emprego, gerir dinheiro. “Tentamos dar-lhes uma estrutura e as competências de que precisam para gerir a vida e mitigar o impacto da violência. O objectivo é saírem dali pelo seu próprio pé, com a vida a correr bem, com os seus recursos, a sua gestão.”

Há dois tipos de vagas. Duas de longo prazo (dois anos) usadas para quem está fazer um percurso escolar e quer prossegui-lo. Duas de curto prazo (seis meses) usadas quando há expectativa de empregabilidade, o que não impede de continuar a estudar. Estão todas ocupadas.

Ao que diz Rita Paulos, “o maior desafio tem a ver com as consequências da crise que já estamos a ver em termos de emprego". "Um jovem que tem um projecto de longa duração já esteve empregado e não lhe renovaram o contrato", exemplifica. "Esperamos que quando acabar o prazo já seja trabalhador-estudante e esteja estável.”

Em Matosinhos, a Plano i gere, desde 2017, um centro de atendimento à população LGBT+, o Centro Gis e, desde 2018, uma estrutura de emergência para essa população afectada pela violência doméstica, a Casa Arco-íris. Desde Julho deste ano, gere um apartamento de autonomização, o que lhe permite fazer um trabalho de continuidade.

Chamou-lhe Casa Cor. As pessoas – maiores de idade, porventura com filhos menores ou maiores com necessidades especiais – podem ser encaminhadas por qualquer estrutura da Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica e ali ficar por até um ano.

Contempla três quartos individuais. Neste momento, ao que diz a directora-técnica Paula Allen, sobra uma vaga. Parece-lhe “mais adequado” do que uma estrutura de emergência ou uma casa-abrigo, a menos que esteja em causa a sua segurança. “Algumas conseguem manter os seus empregos, mas não têm para onde ir. E entrar numa casa de emergência ou abrigo é entrar num sistema de regras que é altamente castrador.”

No início do ano, ao alargar a bolsa de habitação que disponibiliza para vítimas de violência doméstica, a Câmara de Lisboa concedeu dois apartamentos à Ilga-Portugal. Segundo a directora-executiva daquela organização, Marta Ramos, ainda não os accionou. Para o fazer, as vítimas têm de estar capazes de pagar uma renda, embora baixa, e despesas de água, luz, alimentação. As vítimas de violência que acompanha estão noutras fases.