A recessão atual aponta para uma retoma económica bifurcada, com países e sectores a crescerem e outros em crise prolongada, diz o académico Peter Atwater em entrevista exclusiva ao Expresso
A letra que está a ensombrar esta crise provocada pela pandemia da covid-19 é o K, avisa Peter Atwater, professor de economia na Universidade William and Mary, na Virgínia, nos Estados Unidos, uma das mais antigas do país.
O K significa, desta vez, uma bifurcação clara na retoma económica, avançou o académico para distinguir o que se está a passar em relação a outros 'perfis' clássicos de crises. O típico na história das crises é que o ciclo desenhe um V - com uma recuperação rápida - ou, no caso pessimista, que a economia sofra uma recaída em recessão, prefigurando um W.
O K, de que fala Peter Atwater, distingue-se dos outros tipos de recuperação que os economistas têm classificado usando letras do alfabeto (ver Alfabeto das Retomas). No caso de um ciclo em K, uma parte da economia de cada país e alguns países à escala mundial vão registar, de facto, uma recuperação em V (rápida e uniforme) em 2020 e 2021, mas outros sectores e países vão aprofundar a recessão e poderão mesmo sofrer uma depressão por algum tempo.
“Portugal, dada a sua dependência do turismo, que globalmente está de rastos e não se sabe quando regressará à dinâmica anterior à pandemia, vai ter uma retoma muito mais lenta do que o normal”, vaticina o académico em entrevista ao Expresso.
Se recorresse à fauna selvagem, em vez do abecedário, Atwater diz para imaginarmos as duas mandíbulas de um crocodilo bem abertas, precisamente em K. O risco, ironiza, é que se fechem e não haja retoma de tipo nenhum.
PSICOLOGIA DE MASSAS
"Tudo vai depender da psicologia de massas", adianta Atwater, que desde a crise financeira de 2008 se especializou no estudo da confiança dos agentes económicos, o que o levou a criar, naquele ano, uma consultora, a Financial Insygths, depois de anos no mundo da finança, nomeadamente no JP Morgan.
Muito do que vai acontecer nas retomas vai depender se as pessoas encaram a recessão provocada pela pandemia da covid-19 como temporária ou mais permanente. Quanto mais pessoas em mais sectores económicos sentirem que a retoma económica vai ser vagarosa, com maior probabilidade ela será mesmo muito vagarosa”, acrescenta o académico.
O perfil da crise em K surgiu-lhe a partir da observação do que se passava no seu país. O académico norte-americano refere que começou a constatar, desde o início do segundo trimestre deste ano, “uma clara divergência” no comportamento social de dois grupos da população ativa dos EUA.
O LADO INVISÍVEL DO K
“Os profissionais mais bem pagos, que são capazes de trabalhar à distância, adaptaram-se rapidamente a um ambiente de covid-19 e viram as suas carteiras de investimento recuperarem nitidamente”, sublinha. Mas, em contraste, “o empregado dos serviços e o trabalhador fabril foram simplesmente despedidos ou entraram em lay-off”.
Há, por isso, um problema político e social muito grave: “A perna do K, em baixo, com o desemprego em massa, a execução das hipotecas e as falências, é largamente invisível para os que estão no braço do K, em cima”. A divergência no impacto da crise nestes dois grupos sociais passa-se, também, entre sectores dentro de um país, refere o entrevistado.
Atwater destaca que, no caso da União Europeia, a perna do K vai abranger cinco “ecossistemas” (como os designa Bruxelas) – turismo (o mais afetado, com 25% das perdas totais); construção civil; mobilidade (industria automóvel e sector dos transportes em geral, incluindo a aviação comercial); indústrias intensivas no consumo de energia (químicas, papel e celulose, refinação de petróleo e alimentação e bebidas); e retalho.
Finalmente, há uma terceira dimensão do K, geopolítica. Ela coloca a nu as divergências entre países, chama a atenção Peter Atwater. Esta crise vai acentuar a diferença entre filhos e enteados da economia mundial, diz o entrevistado.
O primeiro semestre desta crise gerada pela pandemia já revelou diferenças abissais na dimensão da recessão. Em termos homólogos, o Produto Interno Bruto da Índia afundou-se 20%, o da Zona Euro caiu 18,1% (com Portugal a quebrar um pouco mais, quase 19%) e o do Japão e do Brasil recuou 12%. O que contrasta com a queda, bem menor, nos EUA, de 8,7%. A China registou uma queda de menos de 4%, tendo sido a primeira grande economia do G20 a entrar em recuperação já no segundo trimestre.
Se analisarmos por outro ângulo, o da evolução da economia de um trimestre para outro - o que os economistas chamam de variação em cadeia -, a China é a única grande economia que nos nove meses deste ano já regista um crescimento de mais de 4% em relação ao último trimestre do ano anterior. Todas as outras grandes economias estão ainda no vermelho - a zona euro está quase 3% abaixo e o Japão quase 4%. Os EUA registam uma queda menor, de 1,7%.
As previsões do Fundo Monetário Internacional e da Comissão Europeia não apontam para uma recuperação em V concluída em 2021 em nenhuma grande economia, à exceção da China.
Os casos do Brasil e da Índia, duas das maiores economias emergentes do G20, são particularmente preocupantes sobre a demora que a retoma poderá ter.
Na Zona Euro, apenas Malta deverá registar uma recuperação em V.
ALFABETO DAS RETOMAS
K -- A retoma é bifurcada. Há países e sectores que recuperam rapidamente, e outros que permanecem em contração ou estagnação. Peter Atwater avançou com esta explicação para a crise em curso gerada pela Covid-19
L -- Depois de uma forte contração da economia, a recuperação é muito demorada, podendo levar décadas ou mesmo um século (como na mais demorada retoma da economia portuguesa entre 1811 e 1923).
N -- Deriva de Nike. A crise assume o formato do símbolo da Nike, com uma recuperação rápida inicial, que depois abranda, atrasando o regresso ao nível do PIB anterior à crise
U -- A retoma é mais demorada, atrasada por um período de estagnação. Também designada por crise em formato de banheira
V -- O caso clássico otimista, que se verifica a maior parte das vezes. Depois de uma recessão curta, uma recuperação rápida
W -- O pior cenário. Depois de um período curto de retoma, a economia tem uma recaída em recessão. O caso clássico é o regresso à crise nos EUA em 1937-38 depois da retoma a seguir à Grande Depressão. No caso de Portugal, registaram-se cinco crises em W desde 1865 - a mais recente entre 2009 e 2013.