Andreia Sanches e Ana Cristina Pereira, in Jornal Público
A última vez que se estudou o perfil das famílias de acolhimento foi em 2002. E emergiram inúmeras falhas. Governo já aprovou novo modelo
As famílias de acolhimento têm baixos rendimentos económicos - metade dispunha de menos de 500 euros mensais -, possuem fraca escolaridade e exercem profissões pouco qualificadas. A formação para receber em casa menores retirados aos pais é quase inexistente. E praticamente todas relataram, quando inquiridas em 2002, que não tinham contacto havia pelo menos dois anos com os técnicos das instituições que, à luz da lei, deviam ser responsáveis pelo acompanhamento regular das crianças e jovens.
O perfil da família de acolhimento foi traçado num estudo nunca publicado - da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (CNPCJR) e do extinto Instituto de Desenvolvimento Social (IDS). Não há dados oficiais mais recentes. Mas o "perfil crítico mantém-se", admite Edmundo Martinho, presidente do Instituto da Segurança Social.
Não é a situação sócio-económica das famílias que inquieta o responsável pela entidade a quem compete promover, financiar e avaliar esta medida de promoção e protecção de crianças e jovens em risco: "Não é por terem rendimentos mais baixos que são piores famílias de acolhimento." O "mais preocupante" é a formação e o acompanhamento que têm ficado por fazer, apesar de estarem previstos na lei.
Mudanças à vista
Paulo Delgado aponta as mesmas falhas no seu livro Acolhimento Familiar - conceitos, práticas e (in)definições, publicado este ano. O investigador analisou o que se passava em Gondomar em 2005. "A falta de formação é uma grande lacuna", escreve. Reduz a possibilidade de exigir aos acolhedores "determinados padrões qualitativos de desempenho que não lhes foram transmitidos".
Há famílias "que são visitadas várias vezes e outras que nunca se visitam", observou Delgado. A falta de meios - humanos e materiais - foi a causa identificada para o problema em Gondomar. A nível nacional, só 0,6 por cento das famílias de acolhimento inquiridas em 2002 reportaram ter tido, no ano anterior, um contacto com os técnicos das instituições de enquadramento. Subsiste a percepção de que estas famílias se inscrevem por pressão dos serviços, ansiosos por encontrar uma resposta rápida no mesmo meio desfavorecido onde o menor se insere, retrata o relatório de avaliação externa do Serviço de Acolhimento Familiar da Mundos de Vida. "Como não há formação, nem acompanhamento, muitas vezes a criança retirada à família é acolhida por outra parecida, só que não sofre maus tratos", nota o presidente dessa associação, Manuel Araújo.
As tradicionais famílias de acolhimento "têm uma imagem negativa" mesmo junto das comissões de protecção de crianças e jovens e dos tribunais de família e menores. É por esta imagem associada ao interesse económico, pela reduzida taxa de retorno à família de origem e pelo perfil já traçado, que 70 por cento do acolhimento decretado em Portugal visa o encaminhamento para uma instituição, opina Manuel Araújo.
Em 2006, existiam 4069 famílias de acolhimento que cuidavam de 5345 crianças e jovens - um número muito superior ao que foi publicitado num outro levantamento recente (2698 famílias) que, justifica o Instituto da Segurança Social, deixava de fora uma série de situações, como os jovens com mais de 21 anos que continuam acolhidos.
Mais de metade das famílias de acolhimento têm médias de idades entre 45 e 64 anos, o que se explica por muitos destes agregados serem constituídos por avós. Independentemente dos laços de parentesco, mais de nove em cada dez pareciam não ter dúvidas afectivas: a criança acolhida "é como um filho". O que revela que a relação estabelecida não se reduz "a um contrato".
O que leva estas pessoas a abraçar esta tarefa? Entre as famílias que não tinham laços biológicos com a criança acolhida, a motivação mais referida foi "a possibilidade de ter crianças e jovens em casa". A "possibilidade de criar um neto" foi mencionada por 31,6 por cento das que não têm laços de parentesco. Menos de 3 por cento por cento (do total) apontaram a "possibilidade de auferirem de um apoio económico". Muitas (64 por cento) queixavam-se, contudo, dos apoios pecuniários. Até porque uma "parte muito significativa" destas pessoas vivia em situação de "vulnerabilidade económica" e outra habitava casas com poucas condições (14,2 por cento não tinham sistema de esgotos). O Governo aprovou no dia 8 um novo modelo de acolhimento familiar. O diploma - que está nas mãos do Presidente da República para promulgação e cujo conteúdo não é público - "reflecte" as falhas registadas, explica Edmundo Martinho, e aposta na formação e no acompanhamento.
O ISS quer conquistar uma nova geração de famílias de acolhimento e fará "alguma divulgação da medida" para as atrair, para as recrutar. Na certeza de que ser acolhida por uma família ao invés de internada no lar será, acredita Edmundo Martinho, "mais interessante para a maior parte das crianças" temporariamente retiradas à sua família de origem.
A experiência desenvolvida em Famalicão pela Mundos de Vida, por acordo de cooperação com a Segurança Social, mostra que é possível inverter o perfil das famílias de acolhimento. Esta associação é a primeira com competência para actuar como instituição de enquadramento do acolhimento familiar. Manuel Araújo entusiasma-se com a ideia de ver reproduzir o modelo já avaliado. O Governo responde a muitas das recomendações feitas no estudo de 2002. Contraria uma: a tónica na profissionalização do acolhimento - a tarefa de acolher uma criança é descrita, no comunicado do Conselho de Ministros, como "actividade profissional" que pode ser exercida "em regime de exclusividade" ou "como actividade complementar".
Edmundo Martinho, presidente do Instituto da Segurança Social, diz que o perfil das famílias é crítico.
Adopção versus acolhimento familiar
Uma família de acolhimento pode constituir-se família de adopção, mas os processos não são comunicantes, enfatiza Edmundo Martinho, presidente do Instituto da Segurança Social. Há quem os confunda, mas o acolhimento familiar e a adopção são institutos distintos. O primeiro consiste na atribuição da confiança de um menor que tem que ser afastado temporariamente da família de origem. De acordo com a definição desta medida, o objectivo é, sempre que possível, o regresso da criança à família de origem. As famílias de acolhimento recebem um subsídio. Já a adopção é um vínculo constituído por sentença judicial. A adoptabilidade de uma criança só é decidida quando se entende que a reintegração junto da família biológica não é possível ou não corresponde ao superior interessse da criança. Na adopção plena, o adoptado adquire a situação de filho do adoptante, com todos os direitos e deveres inerentes. A.S. e A.C.P.
Números
4069
Famílias de acolhimento existentes no país em 2006
68%
das famílias de acolhimento têm laços de parentesco com as crianças acolhidas
5345
Crianças e jovens abrangidos pelo acolhimento familiar
1801
Crianças acolhidas no distrito do Porto, o número mais alto do país
Fonte: Instituto da Segurança Social (dados de 2006)