Alberto Castro, Professor universitário, in Jornal de Notícias
Já recomecei este artigo umas quantas vezes. Escrever uma peça para sair no dia de Natal é, pelo menos para mim, complicado. A pretexto das oferendas que os Reis Magos trariam ao Menino Jesus, o Natal foi, progressivamente, perdendo a sua matriz de valores e transformando-se numa desculpa para o consumo. Os nossos vizinhos espanhóis são, apesar de tudo, mais coerentes com a lenda, remetendo a entrega das prendas para a data em que se celebra a chegada dos Reis Magos ao local onde teria nascido o Menino.
Tenho temas suficientes para evitar a referência à data ou sequer à época. Apetece-me, porém, escrever alguma coisa que tenha a ver com a esperança que o nascimento de Cristo simboliza. Mais a mais, este ano fui prendado com o nascimento de três novos amigos (o Luís, a Francisca e a Lia) que, também eles, merecem que lhes ofereçamos a esperança de serem felizes. Será possível?
Nesta época ficamos talvez mais disponíveis para apreciar os pequenos gestos. Não sei se terá reparado na personalidade que a redacção do Expresso escolheu este ano para português do ano Isabel Jonet. A muitos o seu nome não dirá nada. É pena. Só por isso, a escolha do Expresso merece ser louvada e mantém acesa a esperança de que o jornalismo possa, afinal, ser diferente do que se tem vindo a tornar norma. Isabel Jonet é a alma do Banco Alimentar contra a Fome uma instituição que é, em si própria, simbólica da sociedade actual, tão farta e opulenta e, simultaneamente, capaz de gerar a exclusão e a fome. Para alguns, este tipo de instituições apenas serve para mascarar esse fenómeno, perpetuando a demissão do Estado no plano das políticas redistributivas. É verdade que Portugal se transformou numa sociedade em que, a pouca riqueza criada, parece ser toda apropriada por uma minoria, gerando a maior assimetria de rendimento da União Europeia. Poderia tratar-se de um fenómeno episódico ou, mesmo, de um elemento virtuoso que permitisse acumular os recursos necessários para um novo ciclo de investimento. A julgar pela evolução do consumo de bens de luxo e pela ostentação crescente, tal não é o caso.
Que haja alguém que, no meio deste ambiente, se proponha pôr de pé uma organização que canalize bens que, de outro modo, seriam desperdiçados e que, de quando em vez, nos venha desinquietar para a solidariedade, é obra. Exige coragem. O que diferencia, porém, o Banco Alimentar é, para mim, a forma exemplar como está organizado e é gerido. Fruto da iniciativa privada, é a prova provada de que, mesmo em áreas que se julgariam coutada exclusiva do Estado, é possível fazer melhor e diferente. O Banco Alimentar alia, sem hipocrisias, o profissionalismo, com o voluntariado mais altruísta. É um exemplo do muito que há a esperar das organizações sem fins lucrativos, ainda que o objectivo último possa continuar a ser a criação das condições para o fim da exclusão. Creio vir a propósito a citação de um poema de David Mourão-Ferreira, esquecido na memória, e que o meu amigo Carlos Brito fez o favor de me recordar
De mãos dadas talvez o fogo nasça, talvez seja Natal e não Dezembro, talvez universal a consoada.