2.5.23

A POBREZA AINDA ENRIQUECE


Miguel Silva, opinião, in JM Madeira 




A reportagem publicada no Jornal de domingo, assinada pela Bruna Nóbrega e o Rui Silva, tem tudo para chocar as pessoas decentes.

Tem o relato da pedincha envolvendo o que parece ser uma rede organizada com recurso a romenos na Madeira.

Tem o testemunho “triste e envergonhado” do antigo presidente de uma associação que ajuda imigrantes daquela nacionalidade.

Tem fotografias de cidadãos com deficiências várias a pedir em vários locais.

Tem a presidente do Centro de Apoio ao Sem Abrigo a afirmar que não recebeu nenhum pedido de ajuda.

E tem a PSP a dizer que não tem qualquer indício de exploração de pessoas para a mendicidade.

Mas tem também a nossa memória coletiva que adverte para um caso que não é novo. Que já foi identificado noutros momentos. Inclusive que alguns dos cidadãos em causa já por cá estiveram. E que ninguém os vê dormir na rua.

Todo este enredo remete para um caso sério. Um quadro de duplo abuso. Por um lado, gente que organiza este modelo de pedincha e usa as fragilidades visíveis dos pobres. Por outro, do aproveitamento de cidadãos que dão o que não têm para ajudar o próximo.



Este modelo será um dos esquemas mais rebuscados de benefício com a pobreza. Dos que mais chocam pela utilização de pessoas e da generosidade alheia.

Mas não é único. Desde há muito que a pobreza de uns é um campo de riqueza ou, pelo menos, de carreira para outros.

Seja aqui ou em qualquer outra latitude, o mundo segue esta prática em que uns se aproveitam dos outros.

O modelo de sociedade em que vivemos assenta e aceita esta premissa. E, todos, vamos permitindo barbaridades em nome de dois chavões muito em voga: as políticas sociais e o assistencialismo.

E o problema nem são as políticas sociais ou o assistencialismo. É o proveito, próprio e coletivo, que muitos retiram de um e de outro conceito.



A outro nível, que não tem comparação possível com o caso descrito no início do texto, será oportuno lembrar que, também por cá, há quem beneficie de carências mais ou menos envergonhadas. De formas de gratidão e agradecimento.

Em Portugal, o modelo de pagamentos em votos atravessa todos os níveis de poder político e até de outros pequenos poderes corporativos.

De uma forma geral, muitos dão e muitos recebem algo em troca. É quase um mercado paralelo em que quem recebe sente-se devedor e, quem dá, normalmente dá o que não é seu. Dá o que sobra, o que resulta da generosidade alheia e o que é cobrado aos contribuintes através dos impostos.

E por aqui se conclui que, no fim do dia, ninguém dá nada a ninguém.



Como em tudo, há exceções e não se pretende aqui qualquer esboço de injustiça.

Há muita gente que trabalha de forma altruísta, que se esforça, que contribui genuinamente, mesmo entre os tais políticos dos diversos níveis de poder.

Mas há também as ervas daninhas. Aqueles que confundem solidariedade com caridade. Que dão o que não é seu, mas exigem algo para si ou para os seus.

Na verdade, e apesar de tudo, uns e outros ajudam os mais necessitados. Uns e outros acreditam que praticam o bem. A diferença é que uns o fazem de forma descomprometida e outros fazem dessa operação um compromisso entre o generoso e o pobre.

É nessa altura que se percebe por que razão há tanta gente disposta a dar, sobretudo o que não é seu. E percebe-se ainda melhor por que o fazem de forma pública e prolongada. Dão, mas pouco. E só de vez em quando.

E também por aqui se conclui que, no fim do dia, ninguém dá nada a ninguém.