19.5.23

Círculo vicioso de pobreza infantil pede travão a fundo

Tiago Oliveira, in Expresso


Objetivo: mitigar as questões estruturais que colocam muitas crianças em risco é visto como essencial, ao mesmo tempo que a crise económica coloca ainda mais a nu as fragilidades sociais e aumenta a pressão sobre as associações de solidariedade


Os relatos de quem está no terreno deixam um sinal de alerta: as crianças estão mais expostas aos riscos da pobreza e muitas vezes as associações não têm mãos a medir perante o aumento de pedidos de ajuda. Entre a inflação e o agravamento das condições sociais, as situações de muitas famílias agravam-se com riscos que podem ser duradouros se as medidas não forem rápidas e com alcance estrutural.

“O acesso à satisfação das necessidades básicas humanas é uma das dificuldades com que nos confrontamos, desde logo, no que se refere à necessidade de alimentação, onde novas bolsas de fome têm surgido nos tempos mais recentes”, admite o presidente da Academia do Johnson, Carlos Simões, para quem “sem resposta a estas questões, a criança continuará frente a fatores de risco que comprometem o seu desenvolvimento saudável e a aproximam de trajetórias que ameaçam em definitivo a construção do seu projeto de vida”.

Mais do que medidas paliativas, é essencial quebrar o círculo vicioso de pobreza infantil, concordam membros de associações de solidariedade e especialistas. Importa “apoiar financeiramente instituições sem fins lucrativos para corrigir aspetos de vulnerabilidade”, avisa o professor Carlos Farinha Rodrigues. Autor de vários estudos sobre a pobreza e a desigualdade em Portugal é membro do júri dos Prémios BPI/Fundação “la Caixa” (que na componente Infância já premiou 116 projetos no valor de €3,6 milhões, em benefício de mais de 26.000 crianças em quatro edições) e argumenta que “os jovens constituem um dos grupos mais vulneráveis em situação de pobreza”, naquele que constitui “um dos aspetos mais preocupantes da situação social em Portugal”. Carlos Farinha Rodrigues pede “uma visão integral do combate à pobreza” em que é “necessário olhar para o acesso que as famílias têm à saúde e à habitação”, por exemplo. “As crianças não são pobres por si mesmas”, reforça, e por isso são essenciais “ações de promoção das competências” e um “apoio psicológico efetivo” junto das famílias, numa “visão que vai além da carência de recursos” e que passa também, além de outras dimensões, pelo “fomentar de uma educação parental positiva”.

“Ainda hoje recebi um pedido de apoio de pessoas com fome”, confessa José António Carvalho, presidente executivo da Mão na Mão — Associa­ção Crianças do Mundo, que tece duras críticas às “instituições que têm responsabilidade” e que “olham mais para as obras de fachada do que para a ação social”. Já Eliana Calixto, da Sê Mais Sê Melhor — Associação para a Promoção do Potencial Humano e Jovens, considera que “o rácio de profissionais por criança continua a ser aquém para apoiar individualmente as crianças, principalmente se considerarmos as suas características pessoais e as suas eventuais necessidades especiais”, com a perceção que “em termos sociais não existe uma cultura de corresponsabilização social pelo bem-estar das crianças e jovens” que vá “além do assistencialismo básico”.

Repercussões

Para a diretora de Desenvolvimento e Intervenção de Proximidade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Etelvina Ferreira, parece claro que vários “agregados familiares mais vulneráveis e com maiores dificuldades de inserção no mercado de trabalho, com baixa escolaridade e muitas vezes num ciclo reprodutivo de pobreza” só subsistem “através da proteção social proveniente das políticas públicas e do apoio de instituições”. Perante a situação atual, “a exposição a situações de risco como a perda de habitação ou a baixa qualidade na alimentação terá repercussões na saúde [das crianças] a curto e longo prazo”.

“Sabe-se”, acrescenta a psicóloga Ana Sampaio Bahia, da associação Vida Norte, “que as experiências adversas na infância têm implicações no desenvolvimento neurocognitivo, socioemocional e físico das crianças”. Por isso “tem de ser claro para a nossa sociedade que quem não se sente seguro não consegue transmitir segurança”.

Enfrentar problemas estruturais é a ambição do Plano de Ação Nacional da Garantia para a Infância, que pretende retirar 161 mil crianças da condição de risco de pobreza até 2030, com a coordenadora nacional, Sónia Almeida, a avisar que é “muito importante que sejamos capazes de não prejudicar o investimento em medidas que podem fazer a diferença”. É preciso “igualdade de oportunidades” sobretudo quanto temos um conjunto de riscos “que coloca em causa toda uma geração”. O repto está lançado: “Não deixar nenhuma criança para trás é um desafio da sociedade.”
PANORAMA EM NÚMEROS


1,1

milhões de crianças vão ser abrangidas pelo apoio adicional ao abono de família que começou a ser pago esta semana




20,4%

é a taxa de risco de pobreza para as crianças segundo o relatório “Portugal, Balanço Social 2022”
€1,3 MILHÕES PARA APOIAR CRIANÇAS
Qual é o objetivo?

Quebrar Na 5ª edição do Prémio Infância, a ênfase está em apoiar projetos destinados a romper o círculo da pobreza, valorizando a infância e a adolescência e reconhecendo a família como eixo da ação socioeducativa.
Quem se pode candidatar?

Auxílio Podem candidatar-se todas as instituições privadas sem fins lucrativos que apresentem projetos sólidos e inovadores nas seguintes áreas: desenvolvimento social e educativo da infância e da adolescência, favorecendo a igualdade de oportunidades; apoio à primeira infância, incluindo o desenvolvimento de competências parentais; e apoio sociossanitário e psicossocial a crianças em situação de doença. A seleção final dos projetos é realizada por um júri que fará uma avaliação das linhas de ação estabelecidas.
O que está em causa?

Prémio Pelas associações selecionadas será distribuído um montante no valor de €1,3 milhões.
Até quando?

Prazo As entidades interessadas podem apresentar as suas candidaturas até 24 de maio de 2023 AQUI.

PROJETO SOLIDARIEDADE

O Expresso associa-se ao BPI/Fundação “la Caixa” para debater os desafios da solidariedade, do terceiro sector, das instituições que apoiam a infância, os jovens, os adultos, os seniores e as pessoas com deficiência.

Textos originalmente publicados no Expresso de 19 de maio de 2023