3.5.23

“O comboio português é um processo de aprendizagem de competências”

Carlos Cipriano, in Público



Para Paulo Duarte, director executivo da Plataforma Ferroviária Portuguesa, é importante as empresas portuguesas passarem a abastecer o mercado nacional e entrarem nas cadeias dos grandes fabricantes.


Esta quarta e quinta-feira são esperados no Entroncamento cerca de 400 participantes num dos principais eventos ferroviários nacionais – o Portugal Railway Summit, organizado pela Plataforma Ferroviária Portuguesa, que, centrado na indústria, quer pôr o país a discutir a participação das empresas portuguesas nos projectos nacionais e a inclusão da engenharia lusa nas cadeias de fornecedores internacionais.

Como é constituída a Plataforma Ferroviária Portuguesa?
Temos 109 associados, dos quais 71 são empresas, 11 são operadores e gestores de infra-estruturas, e temos ainda 17 universidades, institutos e centros de investigação, mais dez associações ligadas ao sector ferroviário. É um número que está sempre a crescer. O último a entrar foi a Stadler porque nós, nos nossos estatutos, exigimos que qualquer associado tenha residência fiscal em Portugal. Aliás, temos pedidos de outras entidades, mas que não atendemos por não terem a morada fiscal em Portugal.
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Esta conferência tem como pano de fundo a alta velocidade e o Plano Ferroviário Nacional. Em que medida poderá haver uma forte incorporação nacional nestes projectos?
Na 4.ª edição do Portugal Railway Summit tentamos juntar o passado e o futuro. O passado pela escolha do Museu Nacional Ferroviário, e o futuro por debatermos os projectos da alta velocidade que Portugal há tantos anos ambiciona. O evento tem dois dias, mas vamos focar-nos mais no mercado nacional, olhando para o país, olhando para dentro. Temos apenas três convidados estrangeiros: a ADIF e a SNCF, para nos falarem das soluções espanhola e francesa para a alta velocidade, e também um representante dos ONCF [Office National des Chemins de Fer du Maroc], porque achamos que o caso marroquino também é interessante, uma vez que eles já têm uma linha de alta velocidade de 186 quilómetros entre Tânger e Kenitra.

Acredita que vai haver uma forte incorporação nacional na alta velocidade em Portugal?
Essa é uma grande batalha desde que assinámos com o Governo, em 2019, o pacto sectorial para a competitividade e internacionalização da ferrovia. Esse pacto tem três grandes medidas: a criação de um livro branco para definir o caminho a seguir independentemente dos ciclos políticos do país, a criação de uma unidade que agregasse todo o conhecimento ferroviário existente de maneira a aglutinar o desenvolvimento da formação, da consultoria e da certificação (que é tão importante para a ferrovia) e, por fim, a incubação e o desenvolvimento de empresas altamente inovadoras e de valor acrescentado.

O livro branco transformou-se no Plano Ferroviário Nacional, que está em discussão e em fase de ser apresentado na Assembleia da República. A entidade agregadora de conhecimento transformou-se no Centro de Competências Ferroviárias, que já está em funcionamento há mais de um ano. Quanto à criação de um ninho de empresas, avançará assim que estiverem prontas as instalações.

É esse o caminho que levará à desejável incorporação nacional nesse megaprojecto?
Indiscutivelmente. É essa a nossa exigência – que as empresas nacionais tenham de ser integradas obrigatoriamente nos investimentos que vão ser feitos e que valem dez mil milhões de euros.

Só para a alta velocidade?
Não. Também para os outros projectos de modernização da rede ferroviária e para os metros.

E qual a percentagem que podemos esperar de incorporação nacional?
Boa pergunta... Nós conseguirmos que na compra dos 117 comboios para a CP a valorização de incorporação nacional seja, pelo menos, de 15%. Já foi muito positivo. Nunca tinha acontecido no passado. Por outro lado, em termos de infra-estruturas, temos muitas competências para podermos entrar e fornecer a nossa mão-de-obra e a nossa qualificação. E mesmo nas outras soluções de valor acrescentado, Portugal tem uma cadeia de valor muito extensa para ser utilizada na ferrovia, desde as tecnologias da informação, ao interiorismo, ao design, aos têxteis...

Têxteis? Produtos tradicionais?
Claro! Estamos a trabalhar com o CITEVE e o Cluster Têxtil, para o desenvolvimento de tecidos especiais para a ferrovia: antivandalismo, antifogo, sensorizados (com sensores integrados nos tecidos), enrijecidos de forma a diminuir a sua estrutura de suporte e, logo, o seu peso, e com características luminescentes para, em caso de acidente, permitirem visibilidade imediata. E a cortiça! A aplicação de compósitos de cortiça nos comboios de alta velocidade tem a vantagem de ser leve, ecológica, biodegradável e de grande eficiência térmica e acústica.

Qual vai ser a grande novidade desta conferência?
Nós estamos com uma grande expectativa em relação aos construtores de material circulante. Todos eles vão estar aqui: a Stadler, a Alstom, a CAF, a Siemens, a Talgo, que são players europeus muito relevantes. Estamos expectantes sobre as ideias que têm para Portugal e para o desafio que lhes temos proposto de construírem aqui unidades de fabrico de material ferroviário, ou seja, aquilo a que chamamos uma Autoeuropa ferroviária. Acreditamos que, ao conhecerem as competências que as empresas nacionais têm, estas possam entrar nas cadeias de fornecedores internacionais. Disso não temos dúvidas.

Um segundo aspecto é saber que planos têm as empresas nacionais para o sector ferroviário. Daí termos um painel com o presidente da Mota-Engil, a presidente da Caetano Bus, o grupo Barraqueiro, que vão apresentar as ideias que têm para o sector ferroviário, e [vamos saber] se vão assumir aqui a ferrovia como um investimento estratégico prioritário.

Que projectos em concreto já têm financiamento no âmbito do PRR?
Nós vamos dar aqui uma componente muito relevante à área da inovação e da qualificação que está em curso no sector ferroviário. Desde logo um projecto mobilizador de 8,5 milhões de euros que foi denominado Ferrovia 4, que termina no mês de Junho e ao qual queremos dar continuidade através de um Ferrovia 5.0. Trata-se de um projecto com 22 entidades, cujo líder é a Efacec.

E depois temos ainda dois projectos das Agendas Mobilizadoras do PRR nos quais, nós, Plataforma Ferroviária Portuguesa, participamos. Um dedicado à construção de material circulante, no valor de 70 milhões de euros, no qual participam 13 entidades e que é liderado pela Sermec. E outro, no valor de 82 milhões, denominado Vagões Inteligentes, que é da iniciativa da Medway e conta com dez entidades.

Mas há mais: a Plataforma participa ainda em dois CoLab na área ferroviária e num projecto de digitalização – o Digitalbuilt – que associa três clusters: ferrovia, construção e minerais.

Defendeu em tempos que Portugal, apesar de periférico, tem condições óptimas para atrair indústrias ferroviárias...
Estamos a viver uma conjuntura extremamente favorável para Portugal por três motivos: primeiro, porque as directivas comunitárias do Green Deal obrigam a que, até 2050, metade do transporte de pessoas e mercadorias se faça por via marítima ou ferroviária. Segundo, porque a situação pandémica levou à consciência europeia da dependência industrial que tínhamos do Oriente e iniciou-se um processo de deslocalização das unidades industriais de volta para a Europa. Terceiro, porque a situação de guerra e de instabilidade a leste tornou aquela região pouco atractiva.

E é aqui que Portugal representa, com as suas características de engenharia altamente qualificada e valorizada, um destino seguro, que recebe muito bem, e que até tem sol e mar. Ou seja, um país muito atractivo para investir com instalações industriais das grandes empresas e negócios europeus.

Finalmente, o facto de estarmos numa ponta da Europa, com o mar e Espanha como fronteiras, sendo aparentemente uma desvantagem, na verdade é um posicionamento geoestratégico muito relevante para os fabricantes de material circulante, que instalando aqui as suas fábricas facilmente poderão exportar os seus comboios para a África ou América Latina, que são hoje em dia mercados de elevado potencial crescimento ferroviário.

Os materiais para o fabrico de um comboio dividem-se em componentes de alto valor acrescentado (em que as margens de lucro são muito elevadas, chegando aos 35%) e as de baixo valor acrescentado (que têm margens de lucro muito baixas, por vezes inferiores a 5%). Portugal pode aspirar a produzir componentes de alto valor acrescentado?
Portugal já produz diversos materiais de alto valor acrescentado para a ferrovia e exporta-os. Temos software de gestão de segurança e de sinalização, telecomunicações. Por exemplo, a Critical Software, que muita gente associa ao facto de trabalhar para a NASA em soluções aeronáuticas e, mais recentemente para a BMW, tem, afinal, 80% do seu volume de negócios no sector ferroviário.

O Metro do Porto, que foi o último material circulante feito na antiga Sorefame, tinha uma incorporação nacional de 58%. Foi o máximo que se conseguiu. É possível ultrapassar isso?
Temos essa ambição. Se a construção de um tram [eléctrico] tiver mais de 51% de incorporação nacional, então já é um tram nacional, e podemos ir muito além dos 51%. Mas mais importante do que fazer um tram ou um comboio português, é as nossas empresas passarem a abastecer o mercado nacional na ferrovia e entrarem nas cadeias de produção dos grandes fabricantes.

É então isso o comboio português? Ter 51% de incorporação nacional?
O comboio português é um processo de aprendizagem de competências. É querer lidar com os grandes construtores mundiais ferroviários e vender-lhes soluções de valor acrescentado. O que as multinacionais fazem hoje é agregar soluções de diferentes fontes. Logo, a dado momento, se as diferentes fontes tiverem mais de 50% de incorporação nacional, então já é uma solução portuguesa.

Mas deixe-me falar também do fantástico trabalho que a CP tem desenvolvido com a recuperação de material circulante, com duas grandes vantagens: o desenvolvimento e a agregação de competências, assim como a descoberta de uma cadeia de fornecedores nacionais, capazes de satisfazer o sector ferroviário. E isto abre aqui um potencial de negócio futuro de retrofiting, ou seja, recuperar unidades antigas com a incorporação de novas tecnologias e materiais, prolongando o tempo de vida das composições, a um custo muito mais reduzido e cumprindo as directivas de sustentabilidade e economia circular. E a CP fez todo esse trabalho, a um terço do preço gasto, por exemplo, pelos caminhos-de-ferro suíços...

Tem assim tanta confiança na engenharia nacional? Não estamos condenados a participar com produtos de baixo valor acrescentado?
O reconhecimento da nossa engenharia já é uma realidade e por isso é que as grandes empresas, nomeadamente as alemãs, colocaram os seus departamentos de inovação e desenvolvimento em Portugal, como é o caso da BMW, da Continental, da Leika, da Siemens, da Bosch. Recentemente, os próprios franceses abriram um departamento de engenharia da Asltom na Maia.

Que resultados práticos obteve a Plataforma Ferroviária Portuguesa da sua participação na Innotrans?

Foi a assinatura de um protocolo com a Câmara de Comércio e Indústria da Alemanha, que tem mais de 200 associados.