Miguel Gaspar e São José Almeida, in Jornal Público
Declaração de disponibilidade para acolher detidos que não foram acusados e não podem regressar aos países de origem é uma ajuda à Administração Obama para encerrar a base
A disponibilidade portuguesa para aceitar detidos de Guantánamo foi acolhida por várias organizações de direitos humanos como um passo significativo para resolver o obstáculo mais complicado ao encerramento do campo de detenção norte-americano em Cuba - o destino a dar aos cerca de 50 prisioneiros que só não foram ainda libertados por não poderem regressar aos países de origem.
"Com este gesto, Portugal deu uma grande ajuda. Receber estes prisioneiros é a maior dificuldade para fechar Guantánamo. Os outros serão julgados ou serão libertados, mas estes não têm para onde ir", disse ao PÚBLICO Clive Smith, da Reprieve, uma organização não governamental que representa legalmente detidos de Guantánamo.
O ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, disse na quarta-feira que Portugal pode receber prisioneiros de Guantánamo, com o objectivo de ajudar a futura Administração Obama a encerrar a prisão.
Portugal foi o primeiro país da União Europeia a fazê-lo, num momento em que se intensificam contactos entre os Estados Unidos e a UE para resolver o problema daqueles detidos. O responsável pela diplomacia portuguesa disse esperar que outros países da UE assumissem a mesma posição. Um gesto que é também esperado pela Amnistia Internacional, que ontem elogiou a atitude "corajosa" de Portugal, e pelo Center for Constitutional Rights, a primeira organização que enviou advogados para a base. Emi MacLean, desta organização, disse ao PÚBLICO que está em causa o destino de 20 por cento da população de Guantánamo, "presos há sete anos sem julgamento".
Julia Hall, da Human Rights Watch, disse ao PÚBLICO que "é fundamental que a UE faça um gesto em relação à Administração Obama para que Guantánamo possa fechar". A organização apelou ontem aos Vinte e Sete para que aceitem a proposta portuguesa.
Os contactos entre Washington e Bruxelas para resolver a questão de Guantánamo começaram quando Condoleezza Rice se tornou secretária de Estado, no segundo mandato da Administração Bush, mas intensificaram-se nos últimos meses. Conhecida na véspera da cimeira europeia que ontem começou em Bruxelas, a posição portuguesa terá sido debatida no jantar informal dos ministros dos Negócios Estrangeiros da UE.
Luís Amado disse em Bruxelas que tomou esta iniciativa numa carta enviada à presidência eslovena da UE, no primeiro trimestre do ano, e que manteve "um diálogo intenso" com Condoleezza Rice sobre esta matéria. "Guantánamo tornou-se um problema na relação transatlântica", afirmou, acrescentando que a disponibilidade portuguesa deve ser encarada no quadro europeu. "A UE deve assumir esta questão como central no relacionamento com a nova Administração [americana]", disse.
"Este é o momento político para se tomar uma posição pública sobre Guantánamo e fazer um esforço para resolver o problema", disse ao PÚBLICO uma fonte diplomática portuguesa que pediu o anonimato.
O presidente do Instituto Português de Relações Internacionais, Carlos Gaspar, sublinhou que esta disponibilidade mostra "a tentativa de fazer com que os detidos estrangeiros sejam retirados de Guantánamo antes do fim da Administração Bush".
Os cerca de 50 detidos que poderão vir a ser recebidos em solo europeu não podem voltar aos seus países de origem por correrem o risco de vir a ser perseguidos ou torturados. São casos como o de Ahmed Bel Bacha, um argelino de 39 anos, preso em Guantánamo que é defendido pela Reprieve. Militar no seu país, foi ameaçado de morte pelos extremistas islâmicos, se continuasse no exército, e ameaçado de morte pelos militares, se abandonasse as fileiras. Refugiou-se no Reino Unido e depois no Afeganistão, contou Clive Smith. Preso em 2001 no Paquistão, não pode voltar ao seu país. A maior fatia deste grupo é formada por 17 uigures (muçulmanos chineses), e há ainda argelinos, líbios, sírios, palestinianos e uzbeques. A sua libertação foi autorizada pelos EUA e não constituem ameaça à segurança - mas não têm destino. Até agora, só a Albânia aceitou receber oito destes refugiados em 2006.
Asilo político
Uma eventual transferência dos detidos para solo europeu coloca problemas legais complexos. "A UE e os Estados Unidos têm vindo a negociar questões relativas aos conceitos de terrorismo, Convenção de Genebra ou o estatuto dos prisioneiros de guerra", disse fonte diplomática ao PÚBLICO. A nível da legislação portuguesa, "a lei de cooperação judicial internacional estabeleceu o enquadramento jurídico que permitirá resolver caso a caso as questões do perfil e do currículo de cada um dos detidos", disse a mesma fonte. Os refugiados deverão receber o estatuto de refugiados políticos e a UE deverá pedir aos EUA acesso a cada um dos processos, para analisar os respectivos perfis, nomeadamente no plano da segurança.
Para o eurodeputado do PSD Carlos Coelho, Portugal deve receber presos de Guantánamo, mas só depois de os EUA o pedirem formalmente, e disponibilizar-se antes disso.
José Augusto Rocha, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, e Pedro Krupensky director executivo da Amnistia Internacional de Portugal, consideram que o único estatuto com que estas pessoas podem ser recebidas é o conferido pela Lei do Asilo Político. "Portugal deve assumir uma posição muito clara e muito firme sobre Guantánamo, mas deve receber estes novos apátridas, estes novos degredados, por razões de humanidade, dado que os Estados Unidos não têm condições de os manter depois da violência que cometeu sobre eles, nem eles lá quererão ficar", afirmou ao PÚBLICO José Augusto Rocha.
Pedro Krupensky lembra que a Amnistia Internacional defendeu esta solução e escreveu a Amado "pedindo que Portugal o fizesse".
Com Teresa de Sousa e Isabel Arriaga e Cunha, Bruxelas