10.12.08

Um texto que continua actual pelas piores razões

Fernando Sousa, in Jornal Público

Com excepção de dois artigos, toda a declaração, neste tempo de retracção dos direitos, está por cumprir


Todos os homens nascem livres e iguais? A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada no dia 10 de Dezembro de 1948, diz que sim. Mas, 60 anos depois, uns continuam a nascer mais iguais do que outros, num mundo cada vez mais "deprimido", disse a jurista Paula Escarameia ao PÚBLICO. Um mundo onde o "direito à felicida-
de", o fim deste conceito jurídico a que chamamos direitos humanos, continua ausente.

Vivia-se o rescaldo da II Guerra Mundial, as pessoas levantavam a cabeça. Três anos antes, uma jovem judia chamada Anne Frank tinha morrido no campo de concentração de Bergen-Belsen, por doença - e por nada. Viria a ser um dos rostos do que não se queria mais.

O conflito deixara tais marcas que a recém-nascida Organização das Nações Unidas achou que era a hora de deixar preto no branco que o planeta não podia continuar um campo de batalha e os seus moradores meros sujeitos de direito. Queria-se o fim das guerras, e a melhor forma de o conseguir era tirar poder a quem o tinha a mais e dá-lo a quem o tinha a menos. Havia um grito à flor das gargantas, e saiu.

Um grito de "nunca mais"

Foi "um grito de 'nunca mais' diante da multidão de 'pessoas supérfluas', como lhes chamou [a teórica política alemã] Hannah Arendt", mandadas para a fogueira da loucura, diz José Manuel Pureza, professor de Relações Internacionais da Universidade de Coimbra, ao PÚBLICO. "O direito a ter direitos deixou de ser refém da nacionalidade e da soberania dos estados", que deixaram de ser entes "blindados" e passaram a ter que "prestar contas".

Uma reviravolta. Tudo o que se fizera antes, desde o cilindro de Ciro,na antiga Pérsia, às declarações americanas do século XVIII, passando pela Magna Carta, de 1215, a Bill of Rights, de 1689, na Inglaterra, ou a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, 100 anos mais tarde, em França, fora para consumo interno. Esta declaração agora era do mundo.

Hoje, a pergunta é qual é a actualidade do trabalho de Eleanor Roosevelt, presidente da Comissão de Direitos Humanos, que produziu o documento, e de René Cassin, o seu redactor final.

As respostas são mais ou menos amargas. Paula Escarameia, professora de Direito Internacional do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, pensa que o texto continua tão actual como na origem, "pelo menos quanto aos direitos que nela são enunciados", não "quanto às omissões, algumas de grande relevância no nosso tempo." José Manuel Pureza também acha que sim, mas "pelas piores razões, porque o 'nunca mais' que gerou é cada vez mais um 'ainda não' exasperante."

Nos dias destas entrevistas, a Índia ainda tentava alcançar as consequências dos ataques terroristas de Bombaim; no Darfur continuava-se a morrer de fome ou violência; a Somália abeirava-se de uma tragédia igual; a birmanesa Aung San Suu Kyi continuava presa na Birmânia; e não haviam sido libertados milhares de reféns na Colômbia. O campo de Guantánamo ainda não tinha sido fechado. Em Santiago do Chile, Lucía Hiriarte, viúva de Pinochet, dizia que o marido, responsabilizado pela morte ou o "desaparecimento" de 3000 pessoas e falecido há dois anos, neste mesmo dia, morreu com o sentimento de que era vítima de uma injustiça.

"É comum dizer-se que as palavras para libertar a Humanidade já foram todas ditas e que só falta levarem-nas à prática. O que não quer dizer que não devam continuar a ser ditas. [...] Foi o primeiro documento de referência mundial em matéria de direitos humanos. Foi o primeiro documento jurídico a incluir no mesmo articulado, sem hierarquias, todos os direitos, civis, políticos, económicos, sociais e culturais, como um todo interdependente e indivisível", diz Vítor Nogueira, assessor da direcção da Amnistia Internacional Portugal. "Apesar das limitações, o seu carácter ousado e inovador manteve-a viva e actual."

Os que faltam


Mas a declaração, se tem muitos artigos mais cumpridos, tem outros menos cumpridos ou por cumprir - se é que não lhe faltam alguns.

Os mais obedecidos, diz Paula Escarameia, são os relativos ao reconhecimento da personalidade jurídica do indivíduo (6.º) ou o direito à nacionalidade (15.º), talvez por conveniência dos estados. Os menos são a maior parte: os direitos económicos, sociais e culturais, como o trabalho, a saúde, a habitação, a educação, a segurança social, o lazer ou o direito à cultura.

Pureza acha que a declaração está toda por cumprir. "Vivemos um tempo de retracção dos direitos - não só os económicos e sociais, às mãos de um neoliberalismo cego, mas também os civis e os políticos, às mãos de derivas securitárias alimentadas pela chamada guerra contra o terrorismo."

Acima de todos está por obedecer o 28.º, que consagra o direito a uma "ordem social e internacional em que os direitos e liberdades proclamados nesta declaração se tornem plenamente efectivos".

Os artigos que faltariam na declaração seriam direitos antigos que nunca chegaram a entrar no texto. Por exemplo, o relativo à autodeterminação dos povos, e os que nasceram a seguir, "com as alterações do mundo, e não se encontram consagrados, pelo menos expressamente, como o ambiente de qualidade, o desenvolvimento económico ou a protecção dos dados informáticos", explica Paula Escarameia, membro - e única mulher - da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas.

Outros foram contemplados em documentos posteriores, por ter passado a haver uma maior sensibilidade em relação a certas situações: os casos das pessoas com deficiência, das pessoas idosas ou dos trabalhadores migrantes.

Vítor Nogueira também pensa que há direitos que não foram aceites em 1948 e que hoje pedem para entrar. E, além desses, os novos direitos, ditos de terceira e quarta geração, que também poderiam ser contemplados se houvesse oportunidade. Mas que o essencial é o "respeito pelo espírito original" da declaração.

Há direitos que não vêm na declaração, por exemplo o direito à felicidade. "Houve muitas ideias e sentimentos no passado que tiveram expressão legislativa e foram quase esquecidos nos nossos dias. O direito à felicidade, constante das declarações americanas do século XVIII, é um deles", diz Paula Escarameia.

"Seria bom que conseguíssemos pensar em meios para tornar este direito uma realidade, num mundo cada vez mais deprimido, em que ela não anda necessariamente aliada a condições materiais específicas. O melhoramento espiritual de cada um e da sociedade no seu todo, no sentido de uma maior empatia pelo sofrimento alheio e a disponibilidade para criar meios para o aliviar, bem como o desenvolvimento da capacidade para tornar muitas aspirações realidade, parece-me ser o melhor mecanismo para atingir a plenitude humana. O que é também o fim deste conceito jurídico a que chamamos direitos humanos."

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi uma obra escrita e reescrita por vários autores. Mas a sua grande impulsionadora foi Eleanor Roosevelt (foto), mulher do Presidente dos EUA Franklin D. Roosevelt, homenageada na Suíça. O acto teve lugar em Genebra, onde as autoridades helvéticas descerraram uma placa comemorativa da primeira presidente da Comissão de Direitos Humanos. A Santa Sé promove hoje uma celebração solene para "recordar e honrar" a declaração. O Papa Bento XVI assistirá a um concerto de música clássica com o mesmo propósito. As organizações de direitos humanos Amnistia Internacional (AI) e Human Rights Watch (HRW) preferiram assinalar a data com avisos ao Presidente eleito dos Estados Unidos, Barack Obama. A secretária-geral da AI, Irene Kahn, disse que o sucessor de George W. Bush deve fechar Guantánamo e investigar a denúncia de torturas. O director da HRW, Kenneth Roth, em entrevista ao El País, pediu mesmo uma "comissão de verdade" para investigar o que se passou na era Bush.

A birmanesa Suu Kyi é um dos rostos do continuado atropelo dos direitos humanos no mundo.