15.2.16

No país que só tem petróleo e mais nada

in Diário de Notícias

Mulheres às compras num supermercado de Caracas, em que uma estante vazia simboliza a crise alimentar e a escassez na Venezuela

Na capital, a água é tão cara e tão escassa que os habitantes esperam durante horas ao lado de uma montanha de onde ela corre para a estrada. No campo, as plantações de cana-de-açúcar apodrecem e as fábricas de laticínios permanecem ociosas, apesar de as pessoas carregarem sacos de dinheiro com elas para comprar alimentos no mercado negro em todas as cidades e vilas. E aqui, neste porto que em tempos alimentou uma nação, tudo parece deserto. Onde antigamente uma dúzia de navios esperava para entrar, a partir de um forte há muito tempo construído sobre uma colina para proteção contra os ataques marítimos, apenas se consegue avistar quatro.

Ninguém quereria pilhar Puerto Cabello hoje. Já não resta nada para roubar. E tudo está prestes a ficar muito pior. Espera-se que a inflação atinja os 720% neste ano, a mais alta do mundo, fazendo que a Venezuela faça lembrar o Zimbabwe no início do seu colapso. O preço do petróleo, a força vital deste país, entrou em queda abrupta para mínimos jamais vistos em mais de uma década.

Durante o último mês tenho escrito sobre a Venezuela todos os dias, descrevendo o seu povo, a política, a língua, as peculiaridades e a cultura através dos olhos de um correspondente que se mudou para cá no momento em que este país estava a cair cada vez mais fundo no caos económico. Foi um projeto em que momentos fugazes faziam a história: debates aos gritos durante a primeira sessão do Congresso, soldados no túmulo do presidente Hugo Chávez, que morreu em 2013, cartas de expatriados que deixaram a Venezuela devido ao crime e desejavam regressar.

Enquanto escrevia sobre as coisas do quotidiano, alguns temas tornaram-se ainda mais evidentes. Na Venezuela - um país onde os hospitais já não têm seringas, os supermercados têm dificuldade em manter os produtos básicos nas prateleiras e o governo declarou estado de emergência económica, enquanto está sentado em cima das maiores reservas mundiais de petróleo - as tensões aumentam.

Visitei um piscicultor que, após a ração para alimentar os peixes ter acabado, recorreu à moagem de grãos e cana-de-açúcar, atirou-os para o tanque e fez figas. (Obteve peixes pequenos.) Escrevi sobre os pacotes de dinheiro necessários para comprar um pouco de café e água; uma loja que vendia apenas brinquedos estragados; e a lealdade duradoura dos partidários de Chávez. Com a fotógrafa Meridith Kohut, viajei por todo o país no que parecia, para muitos, a véspera de um desastre. Ele era visível nos rostos das pessoas ao longo da jornada, quase 2000 quilómetros no total, a partir da costa, percorrendo os Andes e, finalmente, terminando nas vastas mas moribundas planícies agrícolas da Venezuela.

Ao descer a encosta em Puerto Cabello vimos uma fila formada à frente de um supermercado, com centenas de pessoas à procura de comida. Muitos tinham chegado às 05.30, quando corriam rumores de que um camião de entregas tinha chegado à loja. Às 10.15, um polícia armado montava guarda à porta, deixando entrar uma dúzia de pessoas de cada vez. No dia anterior, tinha havido feijão, farinha e leite para venda. Nesta manhã, havia apenas óleo de fritar.

Ecio Corredor, que estava na fila, disse-me que tinha perdido o emprego em novembro. Ironicamente, contou ele, o seu trabalho era conduzir os camiões das mercadorias do cais para os supermercados. "Agora já não há mais carregamentos", disse. Falava com Carlos Perozo, um outro motorista, que contou estar sem trabalhar há um ano por precisar de uma bateria nova para o seu veículo. Ele não conseguia encontrar outra e, mesmo que a encontrasse, não a poderia pagar. "Tenham cuidado", avisou Perozo. "Alguém irá atrás da vossa."

Palmeiras alinhadas marcavam o perímetro de uma refinaria de petróleo. "Somos todos Chávez", estava pintado na lateral das instalações. Em Morrocoy, a estrada acabava num cais. Um barqueiro levou-nos através de um pântano que terminava numa praia de areia branca, onde Eduardo Vera e a mulher, Carolina Morillo, tinham levado o seu filho pequeno de férias. O casal, que em tempos tinha pertencido à classe média, sobrevivia agora com dois salários que se tinham desvalorizado até ao equivalente a dois euros por dia. Ambos têm trabalhos suplementares. "Conseguimos viver, mas não confortavelmente", disse a sra. Morillo. As férias eram uma extravagância. Os dois, com cerca de 30 anos, sonham em ter outro filho, embora tal lhes pareça impossível agora. "Mal conseguimos encontrar fraldas ou leite para José Antonio", disse o sr. Vera, falando do filho. Mas esperamos tempos melhores, disse ele, acrescentando: "Queremos conhecer a Disneylândia, um dia."

Da costa começámos a avançar para o interior, uma jornada que começou com a descoberta do ouro negro. Não do petróleo, o qual há muito na Venezuela, mas do feijão preto. Quase não existe aqui. São poucos os produtores que o têm ainda ao preço fixado pelo governo. Octavio Medina comprou-o a um preço 50 vezes superior e ainda o vendeu com uma margem adicional na rua. Ele diz que dezenas de pessoas compram sacos, ao preço de metade de um dia de trabalho de salário mínimo.

Começámos a dirigir-nos para os Andes. A estrada ficou mais estreita e cheia de curvas ao subirmos as encostas rochosas. "Vocês estão aqui para cobrir as notícias?", perguntou-nos um soldado num posto de controlo. "Quais notícias?", perguntámos. "Os sequestros", disse ele. Os resgates são um negócio em todo o país.

Mérida fica entre dois altos grupos de montanhas, uma pitoresca cidade universitária andina. Um teleférico, que dizem ser o mais alto do mundo, oferecia, em tempos, vistas deslumbrantes sobre o vale. Agora jaz por ali avariado.

Frank Tirado comia num restaurante, com um sorriso aberto e uma maneira inocente de falar que desmentia o facto de ter acabado de passar por alguns dos meses mais difíceis da sua vida. Ele mostrou-nos uma cicatriz num dos lados da cabeça, prova de uma cirurgia recente ao cérebro. Alguns meses atrás, ele começou a ter dores de cabeça e perda de visão. O neurologista disse-lhe que tinha um tumor no cérebro. Se não fosse operado, ficaria paralisado. Mas a lista de espera no hospital público era de mais de um mês, tempo demasiado para conseguir sobreviver. Um hospital privado poderia tratar o sr. Tirado imediatamente, mas apenas se ele pudesse pagar. Duas tias na Florida transferiram--lhe o dinheiro, contou. O sr. Tirado apertou nas mãos um livro de orações cristão e maravilhou-se com a sua sorte por ter família a ganhar dólares no estrangeiro.

Antes de deixarmos a cidade, fizemos uma paragem na catedral, onde Vladimir Gutiérrez estava sentado nos degraus a pedir moedas. Ele tirou um pão de baixo da sua camisa. O montante que tinha arrecadado, 50 bolívares, não seria suficiente para comprar outro. Mostrou-nos umas feridas recentes resultantes de uma briga de facadas que, segundo ele, começou após um homem ter agarrado a sua filha. "Mas cheguei para ele", afiançou Gutiérrez. Parecia despreocupado com o que estava por vir. Há muito tinha batido no fundo.

A estrada dos Andes desembocava em Los Llanos, coração agrícola da Venezuela. Rodolfo Palencia, um fazendeiro, passou uma tarde na sua rede a cantar-nos músicas que ele escreveu sobre o seu estado de Barinas, a parte mais fértil do país, segundo as letras das canções. Mas as baladas falavam de outros tempos. O sr. Palencia levou-nos a um campo de cana-de--açúcar, que tinha três metros de altura e estava morta. O moinho de açúcar nas proximidades, construído pelo governo no início dos anos 2000, não poderia processar a cana neste ano, disse ele.

Os campos onde antes cresciam os cereais estavam em pousio; tinha havido escassez de fertilizantes neste ano também. Tanto quanto a vista alcançava, estávamos cercados por altas ervas daninhas. E o leite. Aqui também não há nenhum, especialmente em La Batalla, uma atividade que há uma década produzia 126 mil litros anualmente, entre as três fábricas existentes. Foram nacionalizadas e a sua fábrica em La Sabaneta é agora um posto avançado vazio. O único funcionário é o vigia que abriu o portão. Os medidores das bombas eram ilegíveis. O sistema de arrefecimento, aberto, tinha oxidado. Havia morcegos por ali.

"Perda total", começou Alirio Alvarado, olhando para um tanque agrícola onde em tempos tinha cultivado um peixe chamado cachama. Há dois mil tanques nesta área e os agricultores dizem que estão quase todos vazios agora. Foi o sr. Alvarado que colocou os seus próprios grãos e a cana-de-açúcar no tanque. Os peixes cresceram apenas metade do tamanho normal. Depois acabaram-se-lhe os grãos. "Pode-me dizer que eu deveria ter vendido os grãos para que as pessoas pudessem comê-los, mas eu não tinha escolha", disse ele.

A poucos quilómetros de distância, o sr. Palencia, o fazendeiro, levou-nos até à fábrica que se destinava a fornecer alimentação para as explorações piscícolas. Este lugar nunca foi abandonado, porque ele nunca abriu, disseram os fazendeiros. No interior, milhares de dólares em equipamentos não utilizados acumulavam ferrugem. Um manual de instruções estava por abrir num saco de plástico. No chão da fábrica havia faturas espalhadas de uma empresa alemã chamada Andritz Feed & Biofuel. "Que desperdício", disse o sr. Palencia.

Passado pouco tempo apareceu um guarda, admirado por termos entrado. Perguntou ao fazendeiro o que estava ali a fazer. O sr. Palencia não respondeu, virando-se antes para mim. "Se fôssemos governados como deve ser, este país poderia ser mais rico do que a Arábia Saudita", disse Palencia.

Ele mal conseguia conter a raiva, sem saber a quem culpar. Seria o sr. Chávez, morto desde 2013? Seria a maldição da dependência do petróleo? Ou seria o vigia que só agora tinha aparecido? "Eu devia denunciá-lo", disse o fazendeiro, apontando um dedo. "Não me acuse", pediu o guarda. "Você nem sequer está a tomar conta deste equipamento", disse o fazendeiro. "Alguém pode roubá-lo. Você não faz nada." "Eu sou mal pago; você não percebe", disse o vigia. Mas era tarde demais. O senhor Palencia já se tinha afastado.