10.5.16

Pobres que somos

Sérgio Figueiredo, in DN

1. Não é a primeira vez que a ele recorro, mas o facto é que este diálogo entre Otelo Saraiva de Carvalho e Olof Palme não ficou completamente datado no ano em que supostamente aconteceu. "O que quer Portugal com esta Revolução?", perguntou o carismático líder da social-democracia europeia da década de 1970, entretanto assassinado, como se se sabe, a Otelo. Porque era enorme a curiosidade que estava instalada em toda a Europa sobre o curso do nosso país após o derrube da ditadura pelo golpe militar de 1974. Porque Otelo estava, por isso mesmo e a convite oficial, em visita à Suécia. Porque o capitão de Abril não tinha papas na língua, terá respondido qualquer coisa assim: "Queremos acabar com os ricos." Interessante, reagiu o então primeiro-ministro sueco, "nós andamos a tentar acabar com os pobres há 20 anos e não conseguimos".

Esta conversa continua atual por dois motivos, nenhum deles é bom. O primeiro é que, quatro décadas depois, os portugueses continuam mais empenhados em procurar a justa medida da repartição de sacrifícios, sem conseguir perceber por que motivos não consegue gerar mais riqueza. Aliás, foram os poucos ricos que a democracia, subsidiada com uns fundos europeus, foi gerando desde a adesão que simplesmente desapareceram.

Otelo, 40 anos depois, cumpriu a missão: os ricos tornaram-se entretanto em endividados, estão clandestinos ou foram constituídos arguidos.

É a segunda das razões que, no entanto, me leva hoje a recordar Otelo e Olof: se é certo que o nosso país continua a odiar ricos e a censurar a riqueza, também não é menos verdade que foi incapaz de lidar com a pobreza. Não foi Otelo nem o socialismo português que derrubaram os ricos de trazer por casa - foi o próprio capitalismo que fez haraquiri e destruiu a acumulação de capital.

2. Os fenómenos de pobreza estão estudados, as suas origens identificadas, as respostas sociais é que são mal desenhadas. Ou, mais precisamente, são os estímulos que estão errados, as regras do jogo são viciadas. Não é a falta de dinheiro que explica os pobres que temos. Milhões de milhões de euros foram, só na última década, transferidos do Estado para o Terceiro Setor ou diretamente aplicados em medidas dirigidas a grupos vulneráveis ou vítimas de exclusão social.

Esta é, aliás, a causa mais nobre que desde sempre encontrei para justificar as políticas que procuram o equilíbrio das finanças públicas - para que o Estado nunca falte aos que mais dele necessitam. Mas tal não justifica que, em pleno século XXI, se combata a pobreza na mesma lógica que orientou as políticas sociais do século passado.

O Estado continua a mobilizar mais meios para mitigar as consequências da exclusão do que a atacar as raízes do problema. A regra do financiamento público é cega, trata de forma igual projetos com resultados diferentes - porque, como acontece em muitas outras dimensões, privilegia-se a ótica de inputs e não de outputs. (Já reparou como os próprios ministros são muito mais avaliados pelo orçamento que recebem do que pelos reais impactos que as suas políticas geram?!)

E não há qualquer relação entre investimento social, ou até um subsídio a fundo perdido, e a avaliação dos impactos que a política ou o projeto gera. Dito de outra forma, mesmo com a restrição financeira que vivemos, o país poderia ser mais eficaz na redução da pobreza se, também aqui, prevalecesse uma cultura de mérito - e não de assistencialismo, que fomenta a subsidiodependência de IPSS seguramente bem-intencionadas, mas pouco ou nada inclusivas.

3. O estudo da Rede Europeia Anti-Pobreza, ontem divulgado, padece do mesmo defeito: prova que o problema cresceu com a crise, mas reduz o problema a dimensões quantitativas. Quantos menos receberam rendimento social de inserção. Menos milhões para a ação social. Enfim, confirma que o programa de ajustamento penalizou mais os pobres do que a classe média. E que, por conseguinte, as desigualdades sociais agravaram-se nos anos mais recentes, porque se tornaram mais restritivos os critérios de atribuição de subsídios de natureza social, desde logo a começar pelos mecanismos de proteção ao próprio desemprego.

Não é propriamente uma surpresa. Mas também não é uma coisa muito discutida, as fórmulas que existem e devem ser fomentadas para quebrar os ciclos de pobreza. A inovação social é muito mais do que um chavão, há milhares de empreendedores e atores sociais que não se resignam à ideia de que um excluído tem de assim ficar para toda a vida. A receber esmola, sopa e roupa. Ou rendimentos garantidos, que de inserção só têm o nome.

A abordagem que nós próprios fazemos, na comunicação social, não é a mais incisiva nem a mais inclusiva possível. Das fatalidades dos ricos tratamos mais, porque delas se escreve boa parte da história de definhamento do próprio capitalismo nacional: da especulação, dos compadrios, da afetação de recursos desajustada à racionalidade do próprio mercado, dos desvios que violaram leis e violentaram a ética.

O maior paradoxo deste desastre nem é o colapso do BES ou a implosão da PT, ou o desaparecimento da bolsa, ou a brasileirização da Cimpor, ou o controlo chinês do setor elétrico. A coisa mais difícil de explicar, no país estruturalmente mais débil da zona euro, foi ver Portugal cair no terceiro resgate da sua democracia com capacidade instalada a mais: bancos a mais, imobiliário a mais, construção a mais.

Demasiada coisa a mais para uma economia de menos. Como os pobres de Olof e os ricos de Otelo.