Catarina Gomes, in Jornal Público
Ana Cristina via-se na sala de espera a observar as outras grávidas e a sentir-se diferente. "Eu sabia que estava infectada"
Ana Cristina viu o médico abrir à sua frente cinco envelopes, um de cada vez, ao longo de um ano e sete meses. Lá dentro havia resultados de testes ao HIV: negativo, negativo, negativo, negativo, negativo. O último foi o ponto final e confirmou os restantes: que Claudina é saudável e que o HIV não foi transmitido para a criança, ficou só com a mãe.
Portugal é um dos países da Europa Ocidental com maior número de novos casos notificados de HIV/sida, mas há quem veja nos baixos números de transmissão da infecção HIV de mãe para filho uma história de sucesso. No início da década de 1990, mais de um quarto dos filhos de mães portadoras do vírus ficavam infectados. Em 2000, os valores situavam-se nos 3,8 por cento e, nos primeiros nove meses deste ano, não iam além de 0,5 por cento (número já atingido em 2005) - um único caso em 195 recém-nascidos de mães portadoras de HIV analisados.
Foi por causa de Claudina, a sua primeira filha, que Ana Cristina soube que era seropositiva. Foi também por acaso que descobriu que estava grávida. Andava a sentir-se muito mal e decidiu ir ao médico, mas foi por estar grávida que lhe pediram uma bateria de muitas análises, o teste da rubéola, da hepatite e também o do HIV. Quando foi buscar as análises deram-lhe para a mão todas menos uma. "O teste HIV foi enviado para a médica", ouviu. "Pensei que fosse normal", confessa Ana Cristina, que foi infectada por um ex-namorado.
Da doença sabia pouco e o pouco que sabia dizia-lhe que ia "morrer cedo" e que "o mundo tinha acabado". Em Angola tinha acompanhado uma amiga que morreu com sida, "em grande sofrimento". Agora sabe que nem sempre tem que ser assim. Toma todos os dias três comprimidos "muito grandes" que "não são fáceis de tomar". Dos efeitos secundários fizeram parte alucinações.
Mas isso era Ana Cristina, havia que pensar no bebé. Aos quatro meses de gravidez esta ajudante de cozinha angolana de 25 anos - que tinha vindo de férias a Portugal visitar uns familiares e acabou por ficar cá a viver - via-se na sala de espera para a consulta de obstetrícia a observar as outras grávidas e a achar-se diferente. "Eu sabia que estava infectada e que dentro de mim estava alguém que corria perigo."
E essa incerteza manteve-se porque teve azar com a primeira médica que apanhou na gravidez, diz. Divide os clínicos dos serviços de saúde em duas categorias: "há médicas que são só médicas" e "médicas que são amigas". Ana Cristina começou por "apanhar uma médica que era só médica". Nesta categoria coloca pessoas "que passam papéis", como a dela, que "não conversava. Só dizia: tem que tomar os comprimidos" e ela tomava-os.
Só parto por cesariana
Depois mudou de hospital e apanhou "uma médica que era uma amiga" e aí a sua visão mudou, passou também a ter ajuda psicológica na associação Abraço. Percebeu que estava ao seu alcance impedir que o bebé ficasse infectado. Ela tinha que continuar a tomar a medicação anti-retrovírica sem falhas, o parto não podia ser normal e tinha que ser por cesariana. Depois do nascimento, o bebé também tinha que ser medicado com anti-retrovirais até às seis semanas de idade e Ana Cristina não podia amamentar (o leite materno é umas formas de transmissão do vírus). Por volta dos seis meses faz-se a análise mais importante, mas as crianças filhas de mães seropositivas são vigiadas por períodos que podem ultrapassar os dois anos, até se ter a certeza de que não ficaram infectadas.
"Dizem que o materno é o melhor leite." Um dos maiores "traumas" da gravidez foi o quanto lhe custou não dar de mamar. "É uma tristeza ver as outras mães a amamentar e nós não podermos." Nas enfermarias as grávidas seropositivas distinguem-se porque são das poucas que alimentam os filhos com biberões, conta.
Mas o pior momento é quando "vemos as outras crianças calmas nos bercinhos e as nossas estão sempre a ser picadas [para análises]. É um trauma muito grande".
Claudina tem dois anos, anda na creche e faz anos na véspera do Dia Mundial contra a Sida. Quanto chegar aos dez anos e conseguir ler a bula dos medicamentos que a mãe tem que tomar todos os dias Ana Cristina vai falar-lhe da infecção que tem. Mas ainda tem esperanças de que por essa altura a ciência já tenha avançado e já não seja preciso nem tomar comprimidos nem dar explicações.
Maior parte são portadores
Até finais de Setembro deste ano estavam notificados em Portugal mais de 32 mil casos de HIV/sida, quase metade deles são portadores do vírus mas não têm sintomas. Só nos primeiros nove meses deste ano foram notificados 1766 novos casos de HIV/sida. O mais recente relatório anual do Programa das Nações Unidas sobre a doença diz que Portugal é o quarto dos países da Europa Ocidental com mais casos novos de infecções por HIV em 2006 em termos absolutos, mas por milhão de habitantes está em primeiro lugar.
(Os nomes usados são fictícios.)
Nada informados (1 numa escala até 10) ou muitíssimo informados (10) sobre sida? A resposta média, numa sondagem da Marktest, situa-se nos 7,25 valores - o que significa que os inquiridos, mais de 800 adultos da Grande Lisboa e do Grande Porto, consideram-se muito razoavelmente esclarecidos acerca da doença. O uso do preservativo é a forma de protecção contra o vírus mais apontada (84,9 por cento), seguida de não partilhar seringas (19,9 por cento). Perto de 40 por cento dos inquiridos admitem "alguma probabilidade" de vir a ser infectados com o HIV, metade (50,2 por cento) não acha nada provável isso acontecer-lhe. A apreensão é ligeiramente maior na Grande Lisboa.
Quase três quartos (72,5 por cento) dos adultos auscultados identificam as relações sexuais desprotegidas como forma de transmissão do HIV. Perto de metade (47,4 por cento) referem as transfusões de sangue e um quinto (19,5 por cento) a partilha de seringas. A maioria (84,4 por cento) manteria contacto com um familiar, colega ou amigo infectado (quatro em dez dizem que o diminuiriam).
As 814 entrevistas foram realizadas entre 17 e 20 de Julho deste ano. Os resultados foram agora divulgados. B.S.
1766 novos casos de HIV/sida foram notificados em Portugal só nos primeiros nove meses do corrente ano