Ivete Carneiro, in Jornal de Notícias
Estudo da Universidade de Coimbrasugere que falta de vínculo biológicopode não inibir a agressão a crianças
O risco de maus tratos em crianças é maior em famílias reconstruídas do que em famílias nucleares. A conclusão é de investigadores de Coimbra, que lamentam a falta de informação para avaliar o fenómeno no país.
Paulo Gama Mota, coordenador da investigação realizada pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, admite que a amostra em estudo - cem crianças diganosticadas na Instituto de Medicina Legal (IML) de Coimbra em 200 e 2003 - seja demasiado curta para retratar a realidade da violência sobre crianças e jovens. E aproveita para alertar para o facto de Portugal não ter dado, ainda, "o passo para estruturar a informação que permita estudar o fenómeno, caracterizar a situação real e, a partir daí, tomar medidas para combatê-la". Mas as conclusões, garante, são em consonância com as de estudos canadianos e britânicos.
No que toca ao perfil dos agredidos, são sobretudo raparigas (67%) entre os dez e os 16 anos (62%). Quanto aos agressores, nove em cada dez são homens. Os maus tratos, esses, encaixam maioritariamente (73%) nos de maior gravidade, segundo uma escala desenhada pela psiquiatra coimbrã Jeni Canha. Envolvem fracturas, queimaduras, abuso sexual, rejeição e abnadono. Abusos ligeiros só são reportados em 1% dos casos. "Mas é preciso ter em conta que a amostra é toda composta por casos que chegaram ao IML, por natureza os mais graves", explicou o biólogo ao JN.
A equipa de investigadores tentou evitar este obstáculo, mas acabou travada à porta das instituições oficiais: as comissões de protecção de menores, que acompanham e encaminham casos de maus tratos em crianças. "Recusaram fornecer informação. Ou por questões de organização interna, ou por ausência de tratamento da informação, ou por receio de a disponibilizar, apesar de nós não querermos entrar por dados pessoais", disse Paulo Gama Mota. Que admite precisar de uma amostra maior para confirmar uma das principais conclusões do estudo.
A ideia inicial era testar a hipótese de a vinculação biológica poder inibir a agressão de crianças. "E verificámos que há um maior risco em circunstâncias em que um dos membros não é parente biológico da criança". Isto apesar de os números absolutos dizerem o contrário.
A investigação concluiu por mais casos de violência em famílias nucleares do que em famílias reconstruídas, "na ordem de três para um". No entanto, se a incidência de abusos fosse independente do tipo de família, a proporção deveria ser de dez casos em agregados originais por cada caso em famílias reconstituídas - ou seja, a mesma proporção que existe na sociedade. "Daí concluirmos que o risco é maior", embora este não esteja calculado.
"A explicação mais plausível parece residir num efeito colateral relacionado com a ausência de laços de vinculação estabelecidos desde o nascimento, que deveriam induzir a fenómenos de inibição da agressividade relativamente à descendência", conclui o estudo "Cinderela: do conto de fadas à realidade. Perspectiva sobre os maus tratos infantis".
"Isto não quer dizer que não se possa desenvolver afecto nas famílias reconstruídas, mas apenas que o risco é maior de que não se desenvolva", termina Paulo Gama Mota, que admite reabrir a investigação se tiver acesso a dados mais abrangentes.