Bruno Abreu, in Diário de Notícias
Fome. Um estudo de duas universidades norte-americanas prevê que em meados deste século a alimentação de uma boa parte da população mundial estará em causa devido aos efeitos na agricultura das alterações climáticas. Actualmente há 923 milhões de pessoas a sofrer de fome crónica
A humanidade vai enfrentar no futuro uma grave crise alimentar provocada pelos efeitos das alterações climáticas na agricultura. Foi a esta conclusão que chegou um grupo de cientistas das universidades norte-americanas de Seattle e Stanford, depois de analisarem 23 modelos climáticos que prevêem as temperaturas para os verões de 2050 e 2090. As zonas equatorial e subtropical são apontadas como as de maior risco, prevendo-se que as temperaturas moderadas do futuro sejam semelhantes às mais extremas registadas desde 1900. Mas Portugal e outros países mediterrânicos também podem ser afectados, alertam especialistas nacionais.
A crise alimentar do início do ano passado foi um aviso para aquilo que a equipa de cientistas liderada por David Battisti prevê para este século. Segundo o estudo, no futuro, os verões serão muito mais quentes do que actualmente e isto vai provocar uma grave quebra na produção de cereais nas zonas tropicais e subtropicais. Os resultados vão ser crises alimentares.
"As plantas dos trópicos precisam de mais energia do que de água. Os aerossóis, que tornam a atmosfera mais opaca, dificultam a chegada de energia às plantas para que elas realizem a fotossíntese", explica ao DN Pedro Viterbo, coordenador científico do Instituto de Meteorologia. O Sul dos EUA, o Norte da Argentina, a África, o Norte da Índia, o Sul da China e a Austrália serão os mais afectados. Ironicamente, estas regiões são maioritariamente pobres e com grande crescimento demográfico.
Além dos 23 modelos climáticos analisados, os autores do estudo debruçaram-se, ainda, sobre duas das mais graves crises alimentares e climáticas de sempre. Em 2003, uma onda de calor assolou a Europa e matou 52 mil pessoas. Em França, a temperatura média registada foi mais alta em seis graus Celsius do que o habitual. Esta variação foi a suficiente para reduzir um terço da produção e armazenamento de cereais.
O outro caso estudado aconteceu em 1972, na Ucrânia, considerada na altura o celeiro da antiga União Soviética. A onda de calor do Verão desse ano reduziu a produção de cereais e houve uma quebra nos mercados mundiais. "O que me assustou mais é que, quando olhamos para exemplos históricos, vemos que sempre existiram formas de responder ao problema nesse dado ano", disse Rosamond Naylor, que fez parte da equipa de Battisti .
João Melo e Abreu, professor do Instituto Superior de Agronomia (ISA), avisa que as regiões de clima mediterrânico também podem ser afectadas: "Em Portugal continental projecta-se para 2100 um aumento da temperatura média de 30C para as regiões costeiras e 70C para o interior." Mas de que forma pode isto influenciar a agricultura em Portugal? Nas regiões com um clima moderado, "a temperatura pode tornar- -se supra-óptima para o crescimento ou mesmo letal". Estas variações podem levar a alterações nos hábitos dos agricultores e mesmo a migrações forçadas dos animais e plantas para zonas mais moderadas: "Muitas aves migratórias chegam aos locais de nidificação mais cedo ou passam a viver nessas paragens. Muitas espécies invasoras têm prosperado, insectos principalmente, o que poderá estar relacionado com as alte- rações climáticas."
Implicações económicas e sociais
Para os autores do estudo, a única maneira de enfrentar este problema seria os agricultores e criadores de pecuária substituírem os produtos cultivados e as espécies animais por outras mais resistentes ao calor, além de apostarem em novas tecnologias agrícolas. Mas isto pode gerar outros problemas, alerta João Melo e Abreu: "Os custos de produção vão aumentar em muitas regiões devido aos custos das medidas de adaptação" a novos sistemas agrícolas. Isto vai levar ao aumento dos juros e prémios de seguro devido ao aumento do risco: "Os pequenos produtores podem ficar afastados das soluções tecnológicas viáveis e podem desaparecer, e a maioria deve sofrer reduções drásticas nos lucros", diz, dando como exemplo os agricultores do Sri Lanka e do Norte do Brasil que serão dos mais afectados. A razão prende-se com a vulnerabilidade destas regiões perante a escassez da água. "Por exemplo, na Índia cerca de 50% da popu-lação terá vulnerabilidade alta, enquanto em Portugal praticamente toda a população te- rá vulnerabilidade muito baixa a média."
"Temos de repensar os sistemas agrícolas como um todo, não só pensar em novas variedades mas também reconhecer que muitas pessoas vão desistir da agricultura, e ainda mais pessoas vão migrar para outros locais", alertam os autores do estudo.
João Melo e Abreu acrescenta que a coordenação internacional é fundamental "para implementar e avaliar medidas de adaptação" que permitam uma diminuição das emissões de gases de estufa. "A adaptação nos aspectos não tecnológicos tem de ser desenvolvida", pois, segundo o professor, as medidas tecnológicas adaptadas isoladamente não "estão à altura dos desafios desencadeados pelas alterações climáticas."