8.3.23

Crescer em pandemia: "Era bem difícil perceber o que a professora estava a tentar explicar”

Filipa Traqueia, in SIC

O confinamento durante a pandemia atingiu fortemente o ensino em Portugal. As aulas foram dadas por videochamadas e através da telescola. Nuno Cruz tinha 6 anos quando viu a sua casa transformar-se numa sala de aula. A aprendizagem foi “difícil” e, três anos depois, ainda enfrenta alguns desafios.

Três anos depois do primeiro caso de covid-19 ser confirmado em Portugal, a SIC Notícias ouviu o relato de como crianças e jovens viveram o confinamento. Esta é a primeira de três histórias. As restantes serão publicados amanhã e depois.

Nuno Cruz estava no primeiro ano da escola quando a pandemia o fez ficar fechado em casa - e a sentir-se “enjaulado”. Passou das aulas presenciais para um regime online, que incluía aulas na televisão e uma videochamada com a professora por semana. A alteração forçada do regime de ensino poderá ter atrasado algumas das aprendizagens características da idade.

“Havia coisas que não percebia. Era bem difícil perceber o que a professora estava a tentar explicar”. “As minhas dificuldades são escrever. Ler e nos números já estou bem. Gosto mais de Matemática do que Português. Na minha escola sou o rei das tabuadas”, conta à SIC Notícias.

Segundo dados do Pordata, no ano letivo de 2019/2020 havia 386.583 alunos inscritos no 1.º ciclo do ensino básico. No primeiro ano de escolaridade, as crianças começam a ter contacto com a escrita e as contas, com a junção das letras e a leitura, as somas e as subtrações dos números.

Depois dos primeiros casos de covid-19, o Governo decretou confinamento. As escolas fecharam portas e os alunos passaram a ter de aprender a matéria à distância - fosse através do computador, fosse através do “Estudo em Casa”.

Além da batalha que travava para aprender a escrita e a leitura, Nuno Cruz também demorou a conseguir dizer corretamente algumas letras - nomeadamente os F e os V. Estas dificuldades foram um sinal de alarme para os pais que, depois do confinamento, o levaram a consultas de terapia da fala. O objetivo era despistar uma possível situação de dislexia - que acabou por não ser diagnosticada.

Os resultados das provas de aferição, realizadas em 2022 - as primeiras desde a pandemia a serem realizadas fora do regime amostral -, revelaram que as crianças do segundo ano tinham uma maior dificuldade no domínio da oralidade: apenas 41,1% dos alunos conseguiu responder às questões na totalidade ou com poucas dificuldades.

Em 2019 - os últimos dados antes da pandemia - a percentagem de crianças a conseguir responder ultrapassava os 83%. Também na área dos jogos infantis (educação física) houve uma diminuição de 16,5% na percentagem de alunos que conseguiram realizá-los sem dificuldade.

No caso de Nuno, os dois confinamentos - de março de 2020 e de fevereiro de 2021 - coincidiram com os primeiros dois anos da escolaridade. Para a mãe, Irina Ribeiro da Cruz, a interrupção forçada das aulas presenciais criou “um buraco enorme” na aprendizagem das crianças. “É uma fase fulcral para eles aprenderem em contacto com a professora”, sublinha, acrescentando que “não quer dizer que não venha a recuperar, [o Nuno] já recuperou bastante”.

“A infância e a adolescência não se recuperam. Há muito desenvolvimento cognitivo que não aconteceu nesta altura”, prossegue Irina. “O maior impacto ainda está para vir nos anos futuros, ainda se vai refletir daqui a uns anos em termos de saúde mental.”
Ter aulas no computador e na televisão

Nuno lembra-se do dia em que a professora pediu para desenhar o museu de Cascais, de não ter conseguido acabar o trabalho e de ver os amigos a desligarem as câmaras para não mostrarem o resultado à professora.

“Eu vi alguns colegas a taparem a câmara. Eu acho que o esquema era para não fazer os trabalhos”.

Os professores expunham a matéria e projetavam as apresentações, num esforço herculano para evitar que as crianças fossem prejudicadas. Sempre que tinham dúvidas, os alunos podiam acionar o “emoji” da mão no ar - tal como se estivessem na sala de aula. Mas o ambiente era muito diferente.

“Funcionava assim: toda a gente estava com a câmara ligada e com o som fechado [desligado]. Depois, quem colocasse a mãozinha (um emoji da mão) a professora dizia que era como levantar o dedo, mas quando a professora está a partilhar alguma coisa e não está a ver o outro ecrã nós podemos colocar o som e falar”, explica.

Além das aulas online, as crianças tinham também de assistir às lições do “Estudo Em Casa”, que era emitido diariamente na televisão. A memória de Nuno já começa a esvair-se. Já não se recorda das aulas na televisão, mas a mãe garante que fizeram parte da vida do filho mais novo durante os dois confinamentos.

“O plano da escola incluía a telescola. Apesar de ser na televisão, eles tinham de fazer o que os professores diziam e o Nuno não queria fazer. Era um castigo de manhã, começava muito cedo”, lembra Irina Ribeiro da Cruz.

As aulas do primeiro ano eram logo as primeiras da manhã, arrancavam às 9:00. Estudo do Meio e Cidadania, à segunda e quarta-feira, Português, à terça e quinta-feira, e Matemática à sexta-feira.

Irina Ribeiro da Cruz considera que “os pais não estavam preparados” para assumir o papel de docentes e que “houve resistência”. Apesar das adversidades, deixa rasgados elogios aos professores que deram a cara na televisão para fazer chegar a matéria às crianças: “Foram excecionais. Fizeram um excelente trabalho e em tempo recorde”.
A falta do campo e as brincadeiras ao computador

O regresso às aulas presenciais foi complicado para Nuno, mas, agora, garante que gosta mais de ir à escola do que estudar em casa. “É mais divertido. Vais à escola, tens duas ou três horas para brincar e é bué divertido mesmo”, conta.

No primeiro dia de aulas, depois do confinamento, Nuno não queria regressar à escola, contudo, este regresso acabou por ser mais positivo do que esperava.

“Eu chorei porque não queria ir para a escola. Depois limpei as lágrimas, fui para a sala do terceiro ano e encontrei uma nova amiga que se chama Constança.”

Durante o confinamento, Nuno sentiu “falta de brincar” com os amigos. “Quando acabávamos a aula, íamos para o email e para meets [salas de conversa online] e conversávamos”, lembra. Trocava mensagens com os colegas, via vídeos do Youtube e, por vezes, os pais deixavam-no ir ao outro computador, onde podia jogar Minecraft. Quando passava muito tempo em jogos online, os pais notavam que a criança ficava mais irritada e de mau humor.

“Faltava muitas coisas: o campo de futebol, o espaço todo. Em vez de estarmos agarrados a jogar, viciados… Eu gosto mais da escola como ela é. Também gosto das aulas, mas a parte que eu mais gosto é o campo, é bem lisinho, gosto de jogar futebol.”