19.5.23

Acabar com o cabaz alimentar de enlatados e congelados

Susana Peralta, opinião, in Público


Por que raio havemos de restringir ainda mais as escolhas de quem não as tem? Mais vale dar-lhes dinheiro diretamente.


O Governo anunciou na segunda-feira o prolongamento por dois meses do apoio de 30 euros a beneficiários do cabaz alimentar, que começou a ser dado no mês de fevereiro e devia ter durado apenas dois meses. Vale a pena olhar para o desenho deste programa de apoio alimentar. Para aplicar o critério de “carência económica” definido pela Segurança Social, pega-se no rendimento total do agregado familiar (incluindo transferências sociais e outras, como bolsas), subtraem-se as despesas fixas mensais e divide-se pelo número de pessoas. Se este valor for inferior à pensão social, que é de 224 euros, então a família está em situação de carência e tem direito a apoio alimentar.

As despesas fixas mensais consideradas são a renda ou prestação da casa (até um máximo de 500 euros), as contas da água (até um máximo de 10 euros), luz (até um máximo de 25 euros), gás (até um máximo de 20 euros) e telefone (até um máximo de 20 euros), de acordo com a versão do Anexo VI “Condição de Carência Económica”, disponível no site da Segurança Social. Estes valores são para um indivíduo que viva sozinho. Quando há mais pessoas na família, os valores são adaptados – por exemplo, multiplicados por 1,75 para duas pessoas, e por 2,25 no caso de três. São ainda deduzidas as despesas de saúde com prescrição médica, o valor do passe social, as despesas com educação e as despesas com creches e lares.

Impor um teto às despesas deixa pessoas de fora do apoio. O outro problema é que a verificação de todas estas faturas aumenta o custo burocrático do programa e a complicação para as famílias. Nunca é demais recordar que se trata de famílias em situação de grande fragilidade económica e social, à qual frequentemente se associa a fragilidade psicológica correspondente. Seria mais simples classificar as famílias com base no rendimento e na dimensão do agregado familiar. Segundo o Relatório Anual de Execução do ano de 2021, disponível online, o apoio alimentar chegou a cerca de 170 mil pessoas, das quais 46 mil eram menores de 15 anos e cerca de 12 mil maiores de 65. Mas será que há 170 mil pessoas com fome em Portugal?

Lançámos na terça-feira o Portugal, Balanço Social, resultado de uma parceria entre a Fundação La Caixa e a Nova SBE, no qual tive o gosto de trabalhar com o Bruno P. Carvalho e o Miguel Fonseca. A cada três anos, o Inquérito às Condições de Vida e do Rendimento, que usamos no relatório, recolhe informação acerca da insegurança alimentar das famílias – foi o caso do de 2021. O retrato que nos oferece é o seguinte: em 7,3% das famílias portuguesas houve preocupação de não ter comida suficiente para comer, em 6,2% não houve possibilidade de comer comida saudável e nutritiva, em 5,1% comeu-se menos do que devia e em 2,4% houve pessoas que sentiram fome, mas não comeram. Isto é em média. Entre as famílias pobres, em 8% as pessoas passaram fome, o que afeta uma em cada quatro crianças pobres.

Quantas pessoas representam estas famílias? Vai das 250 mil pessoas que sentiram fome, mas não comeram por falta de dinheiro, às 730 mil pessoas que tiveram preocupação de não ter comida suficiente. Não sabemos se a situação está hoje pior ou melhor. Por um lado, a comida está mais cara. Por outro, 2021 foi ainda um ano marcado pelo impacto económico da pandemia. Mas uma coisa podemos garantir: dificilmente as 171 mil pessoas apoiadas com o cabaz alimentar podem prescindir da comida.

Voltemos, então, ao programa. Não é só a fórmula de cálculo que é complicada. Para além do Instituto da Segurança Social, que adquire os géneros alimentares e os bens de primeira necessidade, envolve dois tipos de entidades parceiras: as entidades mediadoras, a quem cabe a distribuição direta dos bens aos destinatários finais e a verificação da sua elegibilidade, e as entidades que “assumem funções de polo de receção”, a quem cabe “receber e armazenar os referidos bens, garantir a sua entrega nas instalações das entidades mediadoras e coordenar a operação”. Acresce que o próprio Instituto da Segurança Social tem funções de entidade mediadora. Cada uma destas entidades vem com a necessária carga burocrática de candidaturas, seleção e renovação.

Depois, vem a parte do concurso público para a aquisição dos bens incluídos no cabaz, que em 2021, segundo o relatório que já citei, eram os seguintes: leite meio-gordo, queijo curado de vaca meio-gordo, arroz carolino, esparguete, cereais, tostas, bolacha Maria, frango, pescada, mistura de vegetais, brócolos, feijão-verde, espinafres, cenoura e alho francês congelados, atum, sardinha, cavala, feijão, grão, ervilhas e tomate enlatados, azeite, creme vegetal para barrar e marmelada.

Quem nos garante que não preferem, sei lá, couve e nabo em vez de espinafres e cenouras? E se num mês uma destas famílias precisar de dinheiro para fazer face a uma despesa extraordinária, digamos, de saúde, ou para mandar arranjar o fogão?

Esta máquina intricada suscita várias questões. Para quê condenar estas pessoas tão frágeis a uma dieta de enlatados e congelados? E quem nos garante que não preferem, sei lá, couve e nabo em vez de espinafres e cenouras? Com que direito a política pública se sobrepõe aos gostos alimentares destas famílias? E se num mês, pontualmente, uma destas famílias em situação de enorme carência precisar de dinheiro para fazer face a uma despesa extraordinária, digamos, de saúde, ou para mandar arranjar o fogão? Por que raio havemos de restringir ainda mais as escolhas de quem não as tem? Mais vale dar-lhes dinheiro diretamente, evitando a logística infernal deste programa que, sem surpresa, leva muitas vezes a falhas nas entregas de alguns produtos. O próprio Tribunal de Contas já o aconselhou.


O que me traz a esta frase aterradora, retirada do tal relatório: “De realçar que sempre que ocorrem falhas em determinado período, tem-se procurado reforçar, sempre que possível e adequado, a distribuição destes alimentos nos meses subsequentes.” Ou seja: a comida chega um mês depois. Se chegar. Ainda bem que o Governo decidiu passar às transferências de dinheiro. Com um pouco de sorte, os problemas logísticos do cabaz de congelados e enlatados vão continuar e o programa será em breve enterrado de vez, em troca de uma transferência permanente para estas famílias, que assim deixarão de viver dois meses de cada vez.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico