Nos últimos meses, os livrinhos que o filho de Fátima Faial e Hugo Diniz pede para os pais comprarem sempre que vão às compras no supermercado têm ficado para trás. Para casa, vem só o essencial.
“Ele gosta muito de ler”, diz Fátima, falando do filho. “E já começa a aprender os números, vê os preços dos livrinhos no supermercado e diz ‘mas isto custa pouco, mãe’. Eu respondo: ‘Isto custa pouco… mas não posso. Já falámos sobre isso em casa’”, relata Fátima.
Ela e o marido eram funcionários da empresa Apeadeiro 2020, responsável pela concessão do serviço de cafetaria e bares dos comboios Alfa Pendular e Intercidades. A empresa acumulou dívidas à Segurança Social, às Finanças, aos fornecedores e pagou o último salário aos trabalhadores em Janeiro deste ano.
O filho de ambos tem oito anos, e dá sinal de entender a situação. “É muito triste. Já lhe dissemos que estamos os dois sem trabalhar”, diz Fátima.
Como eles, estão 130 pessoas (cerca de 45 no Porto e os restantes em Lisboa), que exercem as funções de assistentes de bordo, administrativos, controladores dos armazéns ou os funcionários que carregam e descarregam a carruagem da cafetaria para os passageiros da CP – Comboios de Portugal poderem usufruir do serviço.
Dos últimos meses ficam as datas que, uma a uma, foram mudando as suas vidas: 28 de Fevereiro, o dia em que o dinheiro não caiu na conta, como era certo aos 28 de cada mês; o dia seguinte, 1 de Março, o primeiro de uma greve de oito dias; 8 de Março, quando a CP rescindiu o contrato com a Apeadeiro 2020, a greve terminou mas a vigília entretanto iniciada prosseguiu; 3 de Abril, dia em que a CP lançou concurso para novo concessionário para a exploração dos bares dos comboios e deu “duas a três semanas” para resolver a situação; a 20 de Abril foram anunciados a nova empresa concessionária, a Newrail, e o compromisso de que esta pagaria os salários em atraso.
E 28 de Abril, quando o sindicato foi informado da assinatura do contrato entre a CP e a Newrail, a nova concessionária, que, numa carta aos sindicatos, se comprometeu a regularizar os salários em atraso. A vigília montada desde o início de Março junto a Santa Apolónia, Lisboa, e Campanhã, no Porto, foi levantada ao 54.º dia, na sexta-feira à noite. Falta a certeza do desfecho.
Luís Baptista, dirigente do Sindicato de Hotelaria do Sul (envolvido nesta luta juntamente com o Sindicato de Hotelaria do Norte, ambos da FESAP), acredita que tudo será esclarecido numa reunião marcada para terça-feira, 2 de Maio, na DGERT – Direcção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho (do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social), entre a CP e a Newrail.
Com efeito, nas respostas ao PÚBLICO, a CP disse, na sexta-feira, estar em condições de assinar o contrato na terça-feira e de retomar o serviço e o trabalho dos 130 trabalhadores dois dias depois, 4 de Maio.
Oito semanas de vigília
“Eu tenho esperança, ele tem conhecimento”, diz uma das funcionárias, Luísa Simão, sobre o novo patrão, Rui Gonçalves, gestor e antigo director da CP.
Sentada a uma mesa num canto de uma das tendas, quando o acampamento ainda persistia em Santa Apolónia, Luísa parece talhada para a luta. A pequena estatura realça-lhe a postura guerreira. “Nós vamos sair daqui pessoas diferentes. Uma coisa é estar em casa, ver que outros passam mal, desligar a televisão e não pensar mais nisso. Outra coisa é passarmos mal. Agora, não vamos desligar e não querer saber.” A determinação não anula o desamparo do olhar.
Passaria mais horas ou dias na vigília, que agora terminou, se não tivesse uma filha de oito anos para cuidar, diz. “Um dia, a minha filha acordou e disse: ‘Mãe, sonhei que não tinhas dinheiro para pagar a casa e que me abandonavas’”, continua, enquanto se lhe soltam lágrimas dos olhos. “Ela absorve tudo”, e isso preocupa Luísa.
Refeições doadas por sindicatos
É hora do almoço, a meio da semana passada. À tenda onde está Luísa vêm representantes do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local e Regional (STAL) entregar sacos com as refeições para o dia, como acontecia todos os dias úteis. São cerca de 20 refeições por dia, elogia Luísa.
“Eu vejo uma luz ao fundo de túnel. Se o patrão aparecer e me trouxer um cheque, levantamos o acampamento”, diz por sua vez Fátima. Fazia quatro dias de vigília seguidos e tirava dois de folga, garantindo presença entre as 7h e as 15h ou entre as 15h e as 23h, exactamente como acontecia quando havia trabalho.
Reveza-se com o marido, Hugo, habituado a turnos nocturnos, e contava com a ajuda da sogra com o filho quando pai e mãe tinham horários sobrepostos para cumprir. Não são o único casal que aqui se conheceu, casou, comprou ou arrendou casa, constituiu família. E embora o marido, em alguns dias, tenha cedido ao desespero perante a incerteza, Fátima aguentou-se firme. Outras pessoas estão em situação tão ou mais difícil, dizia.
Renda por pagar há três meses
Na casa de Maíra Carmo e Marcelo Preto, era o marido que, mesmo não acreditando, prometia à mulher que haveria solução.
Vivem com os três filhos, as duas mais pequenas de quatro e 12 anos, e o mais velho de 19 anos, que decidiu interromper a meio o curso profissional, para trabalhar. “Ele queria ter a sua independência”, diz Marcelo. “Ele queria ajudar-nos”, completa Maíra.
O casal senta-se a uma mesa na cozinha vazia de um pequeno apartamento na Amadora. As palavras dele e os gestos dela vão dar ao mesmo beco sem saída aparente.
Sem família em Portugal, com uma renda de 550 euros mensais para o senhorio, a quem ficaram a dever logo em Fevereiro, a alimentação da filha na escola, e todas as contas da casa, Marcelo deixou de poder estar sempre presente na vigília, para ganhar cinco euros por hora quando surgia a oportunidade de fazer uns biscates para uma empresa de mudanças no seu bairro.
“Ou eu contribuo com a luta ou eu contribuo para a minha subsistência”, diz Maíra, ao falar por ela, pelo marido e pelos colegas que tiveram de escolher.
Tudo estava a correr bem desde que chegaram do Brasil, no ano passado, e começaram, primeiro com contrato, e depois como efectivos. Ela como assistente de bordo e ele como funcionário do armazém recebem o salário mínimo, mais o subsídio de alimentação. Com feriados, noites ou horas extras pelos atrasos dos comboios, “a gente consegue fazer render um pouco mais”.
“Agora é que a gente pega a real noção de cada cêntimo”, diz o produtor de vídeo e som, licenciado no Brasil. Tinham uma vida estável em São Paulo, até ao dia em que um assalto à mão armada os fez ver a morte de frente e apostar tudo em Portugal, sendo o pai de Marcelo (e ele próprio) português.
“Tudo o que a gente tem é para o conforto das crianças, a escola, uma boa alimentação, por vezes um passeio. Não é luxo", diz Marcelo. "Não viemos atrás de riqueza. Aqui não é para ficar rico. Aqui é para trabalhar, sobreviver e ter segurança e educação”, continua Maíra.
Sem nada para poupar
Um dia, a filha de 12 anos chegou a casa com a ideia fixa de ajudar os pais e pôr-se à porta da escola a distribuir panfletos e ganhar 10 euros. “Dissemos-lhe que nem pensasse nisso. Ela estava na escola para estudar, não para trabalhar.”
A família tem vivido de doações de alimentos do vizinho, dos colegas e de pessoas sensibilizadas que entregavam comida no acampamento até à passada sexta-feira. “Eles entregam e repartem em sacolas para distribuir pelos colegas. É muita coisa que eles dão”, diz Marcelo agradecido.
Cereais, gel de banho, sardinha em lata, atum, salsinha, leite, massa, arroz, azeite não têm faltado. “O dinheiro já foi faz tempo”, diz Maíra, com um estalido dos dedos. Nesta casa, todos os meses, não sobrava nada para poupar. O último dia de Fevereiro foi o primeiro em que o casal se viu sem nada para gastar.
Ajuda de pais e sogros
No primeiro mês sem salário, Fernando Silva e Sónia Henriques pagaram as despesas mensais com a verba que tinham de parte para pagar os gastos anuais: seguro do carro, inspecção, condomínio e IMI, enumera Sónia.
“Em Março já tivemos de pedir à minha filha e Abril foi igual”, explica. A filha de 22 anos trabalha num restaurante em Lisboa. Também os pais, sogros de Fernando, os têm ajudado. “Aos 53 anos de idade, tenho de pedir ajuda aos meus pais...”, lamenta Sónia.
Com a função de controladores de armazém, juntam ao ordenado-base de 800 euros o prémio de responsáveis, o que resulta em cerca de 900 euros por mês.
O casal, que se conheceu aqui há quase 30 anos, dá voz a uma grande revolta por ter sido a empresa de um funcionário da CP, José Carlos Alegria, que concorreu e ganhou a concessão dos bares, para pouco tempo depois falir e causar tamanha aflição a tantas pessoas. O PÚBLICO contactou o empresário, mas o número pessoal deu sinal de desligado nos últimos dias.
Maíra e Marcelo indignam-se com a própria CP. “Esperávamos um processo mais humanizado.” Não esperavam ficar dias, semanas e meses com a vida por um fio. Foram 90 dias a que o compromisso da nova empresa, a cumprir-se a partir desta semana, porá fim.