Se gestante revogar o contrato tem de haver uma “inequívoca identificação” dos deveres e direitos dos progenitores biológicos. Parecer pede clarificação da lei de gestação de substituição.
A proposta do Governo de regulamentação da gestação de substituição precisa de ser aperfeiçoada em vários pontos, considera o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV). No parecer, tornado público esta terça-feira, o CNECV defende que no caso de a gestante revogar o contrato, e de os progenitores biológicos quererem ter os seus nomes no registo da criança nascida, tem de haver uma “inequívoca identificação dos deveres e direitos que lhes assistem”. Nomeadamente no que diz respeito à filiação, admitindo o CNECV que a criança tenha três pais no registo se ambos os beneficiários tiverem dado gâmetas.
“A nossa primeira preocupação é a salvaguarda dos direitos da criança. O artigo 7.º da proposta do Governo, na alínea b diz que os beneficiários que contribuíram com gâmetas podem exigir à gestante [em caso de arrependimento desta] que um dos seus nomes conste do registo da criança. É preciso saber se se trata de apontar um nome ou se a indicação do nome da progenitura biológica acarreta direitos e deveres. É preciso saber se implica pagar o sustento do filho, direitos de visitação”, exemplifica Maria do Céu Patrão Neves, presidente do CNECV.
É sobre o que deve acontecer em caso de arrependimento da gestante que o parecer mais se foca, considerando que a redacção deste artigo deve ser melhorada, “por forma a tornar claro que há o estabelecimento de vínculos de filiação também face aos progenitores genéticos”. “Entendemos que a lei preveja que todos os intervenientes biológicos (genéticos) sejam considerados, nos termos da lei da filiação, como progenitores, mesmo que haja o exercício do direito de arrependimento”, lê-se no documento, que refere que no caso de um casal de pessoas de sexo diferente em que ambos tenham contribuído com gâmetas, “os beneficiários teriam o direito a inscrever no registo civil a sua progenitura (maternidade e paternidade) a par com a maternidade da mulher gestante (que exerceu o direito de arrependimento)”.
“Teríamos duas mães e um pai”, sugere o parecer, que refere que "no caso dos outros possíveis beneficiários – casais de mulheres ou mulheres sós – não se coloca esta hipótese de tríplice progenitura". O parecer refere ainda que competirá aos tribunais “dirimir a regulação das responsabilidades parentais, nos termos gerais, tendo em conta o superior interesse da criança e a manutenção de vínculos saudáveis com todos os progenitores”. Também o modo como a norma está escrita é considerado “inadequado” pelo CNECV, que diz que “seria eticamente censurável”, por não respeitar o superior interesse da criança, “que constar o nome no assento de um dos progenitores biológicos ficasse dependente da vontade dos progenitores”.
Para o CNECV é também fundamental que a regulamentação estabeleça “um prazo razoável para o exercício do direito ao arrependimento” – entre o nascimento e o registo do bebé que pode acontecer até 20 dias após essa data – e que fique claro o processo de entrega da criança por parte do casal beneficiário à gestante, caso esta revogue o contrato. “A gestante tem 20 dias para expressar arrependimento. Se os beneficiários ficarem com a criança e a registarem como sua no dia do nascimento e a gestante se arrepender dez dias depois, qual o processo? Haverá um novo registo? Quem vai buscar a criança a casa dos beneficiários?”, questiona a presidente do CNECV.
“Quando se faz uma regulamentação, é preciso dar uma resposta satisfatória às questões da vida real”, aponta Maria do Céu Patrão Neves, considerando que a proposta apresentada pelo Governo, apesar de conter avanços positivos em relação à proposta de anteprojecto de regulamentação que tinha sido inicialmente apresentada, ainda tem “riscos de vulnerabilidade acrescida para as partes envolvidas, nomeadamente a criança, e zonas de conflitualidade” que precisam de ficar esclarecidas.
O parecer também defende que deve haver “um reforço de meios humanos e de capacitação funcional” do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) perante a atribuição de “novas tarefas e exigentes competências” e que os pareceres das ordens dos Médicos e dos Psicólogos, para o processo de aprovação dos processos de gestação de substituição, devem ter um carácter obrigatório.
Quanto à questão do direito à confidencialidade e à protecção de dados pessoais, previsto do artigo 2.º da proposta do Governo, o parecer salienta que “esta confidencialidade não obsta ao direito da criança nascida ao conhecimento das suas origens genéticas e da sua história pessoal”, incluindo a identidade dos dadores de gâmetas e da mulher gestante de substituição, “como resulta das imposições constitucionais e da lei geral”. “Assim, como é sabido, o processo que corre junto do CNPMA será devidamente conservado e deve estar prevista a possibilidade de consulta por parte da futura criança, após os 18 anos.”, lê-se.
Protecção de Dados dá OK
Além do CNECV, houve também um pedido de parecer ao CNPMA, a quem cabe a autorização dos processos de gestação de substituição. A presidente Carla Rodrigues explica que o parecer, que ainda está a ser elaborado, deverá ser enviado ao Ministério da Saúde até ao final da semana. A responsável adianta que, tendo em conta a data da reunião plenária do CNPMA, que se realizou na última sexta-feira, avisaram o ministério que não conseguiriam cumprir o prazo inicialmente indicado.
Também a Comissão Nacional de Protecção de Dados foi chamada a pronunciar-se sobre a proposta de regulamentação do Governo. Segundo o parecer, divulgado no seu site, a CNPD diz considerar que “as operações de tratamento de dados pessoais previstas pelo Projecto de Lei não põem em crise o regime jurídico de protecção de dados”.
Mas sugere alterações no artigo 2.º do projecto referente à questão da conservação dos dados pessoais dos vários intervenientes, referindo que ao CNPMA não foram dadas as “ferramentas indispensáveis ao cumprimento das suas obrigações legais enquanto responsável por delicados tratamentos de dados pessoais”. Salienta também que o artigo não faz referência expressa ao Regulamento Geral sobre Protecção de Dados, mas apenas à lei 58/2019.