Nesta entrevista que junta o 40º aniversário da Associação Nacional de Medicina Geral e Familiar e o Dia do Médico de Família, o médico Nuno Jacinto, presidente da associação dos Médicos de Família, elenca as dores de crescimento de uma especialidade médica que diz ser olhada como “parente pobre” da medicina e que, simultaneamente, é vista por todos como “a base” do Serviço Nacional de Saúde. Porque faltam médicos? E onde? Como não pára de crescer o número de portugueses sem médico de família?
Começo por um número impossível de fintar: quase 1,7 milhões de portugueses estão sem médico de família, entre eles mais de um milhão é na região de Lisboa e Vale do Tejo. Como é que isto se consegue explicar?
O milhão e 700 mil a nível nacional tem alguma justificação aritmética simples. Ao longo dos últimos anos cada vez mais médicos saíram do sistema do que os que entram. Isto acontece por duas grandes razões: uma delas é porque estamos a viver um pico de reformas, sobretudo em 2022, 2023 e 2024; outra é porque temos tido imensa dificuldade em captar e reter no Serviço Nacional de Saúde (SNS) os médicos de família ao longo dos anos. O número de médicos que terminaram a sua especialidade e que ficam no SNS é um número cada vez menor.
Uma notícia recente dá-nos conta de candidatos para apenas 40% das 900 vagas, no último concurso.
Os números mostram que o SNS não está a ser atrativo para os médicos. Nós formamos médicos de família considerados dos melhores do mundo e não os conseguimos aproveitar. Lisboa e Vale do Tejo é uma situação muito particular pela acumulação de graves carências de profissionais, nomeadamente médicos de família, e de muitos utentes sem médico atribuído. Isto causa uma sobrecarga de trabalho nos profissionais que lá estão e torna essas unidades ainda menos atrativas [para os médicos]. Sendo menos atrativas, passam a ter uma menor capacidade de formação de internos. E tendo menos internos, têm menos capacidade de ter pessoas que lá queiram ficar. Depois começamos a olhar para os colegas já formados, já com uma rede familiar e de suporte montada, e pedimos-lhes que, de um momento para o outro, mudem de vida e venham para uma região? Não é lógico e não acontece. Por isso, quando nós dizemos que faltam médicos de família no interior, não é verdade. A grande falta é em Lisboa e Vale do Tejo: Amadora, Oeiras, Cascais, Loures, Odivelas…
A própria capital não está a ser atrativa?
Não está e tem a ver com tudo isto. Há grandes assimetrias na formação, na organização das unidades – LVT tem menos USF [Unidades de Saúde Familiar] modelo B do que têm as outras regiões do país. Isto associado a menos formação, condições menos atrativas, custo de vida mais elevado e ao facto de as pessoas não serem dali, acaba por fazer com que seja muito difícil atrair colegas. O que temos feito até agora é abrir concursos, esperando que, por magia, os colegas escolham as vagas para aqueles locais.
Para si, a diferenciação de vencimento por zona do país seria uma medida a ter em conta?
O que deveria existir e deveria ser implementado seria uma ponderação da carga de trabalho de cada lista [de utentes], tendo em conta também estas realidades: número de utentes sem médico, número de profissionais existente, número de polos de cada unidade, a distância a um serviço de urgência. Se nós conseguíssemos aplicar essa diferenciação, saberíamos que ter uma lista de 1900 utentes no centro do Porto não é igual a tê-la em Évora, onde eu trabalho, em Sete Rios, em Faro ou em Bragança. Através desta diferente ponderação das listas, essa majoração ia ser feita automaticamente. Se eu estiver numa zona mais trabalhosa, com uma maior carga de trabalho por lista, a minha lista, das duas uma: ou para o mesmo vencimento haveria uma lista de menor dimensão; ou para uma lista de igual dimensão haveria um ordenado superior. O que nós estamos a fazer, genericamente, não é dar médicos às pessoas, é dar pessoas aos médicos. Isso, só por si, não garante acessibilidade nenhuma. Se nós formarmos listas de três mil utentes, de repente toda a gente passa a ter médico de família atribuído, mas é impossível ele conseguir dar resposta em tempo útil.
“Quando nós dizemos que faltam médicos de família no interior, não é verdade. A grande falta é em Lisboa e Vale do Tejo.”
Para si, o modelo B foi positivo?
Foi claramente positivo. Aliás, a reforma dos cuidados de saúde primários foi positiva, precisamente porque tinha como alvo este modelo B, que traduziu algo completamente diferente: o pagamento pelo desempenho. Foi um assumir de risco por parte dos profissionais. É preciso que isto seja dito. Agora dizemos sempre que o modelo B tem uma melhor remuneração, mas é porque os profissionais trabalham para isso e atingem os objetivos a que se propõem. Até há duas dezenas anos isto não acontecia. Ninguém trabalhava por objetivos. Trabalhasse mais ou menos o salário era sempre o mesmo. Mas o modelo tem 15 anos, precisa de ajustes. Há locais onde, com a legislação atual, por mais que se queira, não é possível instalar uma USF Modelo B.
O que me diz é que, no limite, todas as USF poderiam passar para o modelo B?
Se todas funcionassem como modelo B e tivessem o mesmo modelo remuneratório, seria muito melhor do que aquilo que temos agora. Apesar disso, como digo, é um modelo com 15 anos que precisa de ser adaptado aos tempos atuais.
Chegou a dizer que não há propriamente falta de médicos. Continua a corroborar isso?
Sim. Nós, neste momento, temos um pouco menos de 5500 médicos de família no SNS, temos cerca de 8 mil especialistas de medicina geral e familiar e temos 2 mil internos em formação. Muitos colegas saíram do SNS.
Fala-se em abrir mais vagas e fala-se em majorar vencimentos, de forma global, para esta especialidade, como forma de colmatar este problema. E resolve?
Começa a resolver. Um dos grandes problemas – e nisto temos de ser claros – tem a ver com a remuneração. A remuneração-base não é digna para aquilo que é a nossa responsabilidade. E, portanto, estando nós num mercado livre, com ofertas no privado e no estrangeiro, estes profissionais acabam por procurar outras soluções.
Sendo que a oferta do privado cresceu imenso nos últimos anos, esta fuga tem a ver diretamente com a falta de competitividade dos salários oferecidos no SNS?
Não só. Se formos falar com muitos colegas que estão no privado, eles muitas vezes até ganham o mesmo ou menos do que se ganha nas USF Modelo B. Agora, as condições de trabalho, como o horário, as exigências, as burocracias, são diferentes. Tudo isto pesa na balança. Por isso é que dizemos que a questão salarial, sendo importante, não é suficiente.
Em parte porque esta especialidade é interessante para o privado, no sentido em que é muito abrangente?
Certo. É uma especialidade abrangente que, progressivamente, foi sendo reconhecida no privado como muito interessante. Com este crescimento e com a deterioração das condições no SNS, é óbvio que os colegas começam a ponderar mais esta alternativa do que ponderariam há dez ou vinte anos.
Se o Nuno tivesse de elencar aquilo que é a principal causa para a crise que se vive nos cuidados primários, diria o quê?
É a falta de aposta nos recursos humanos, nomeadamente nos médicos de família. A pandemia veio demonstrar-nos ainda mais isso. Nós fomos olhados como o local para onde ia tudo o que não interessava ou que não tinha solução. E fomos tratados como se a nossa atividade fosse dispensável. Deixámos de fazer consultas, rastreios, para fazer chamadas telefónicas, para ir aos lares, etc. Isso foi um choque muito grande para os médicos de família porque sentiram que não eram valorizados. Mais: eu diria que sentiram que não eram respeitados.
Sente que existe ainda uma réstia de estigma do tempo em que ser médico de família não estava integrado numa especialidade?
[suspiro] Nós sentimos que há um reconhecimento grande por parte dos utentes e dos nossos pares, mas não sentimos esse reconhecimento da tutela. Não sei se é um estigma ou não, mas muitas vezes somos olhados como o parente pobre. Os cuidados primários, onde também está a Saúde Pública, são olhados como o parente pobre. Só se lembram de nós quando as coisas se complicam. Continuamos com uma visão muito focada na realidade hospitalar, na tecnologia de ponta, na medicina de alta precisão, avançadíssima. Isto é a ponta da pirâmide. Temos de olhar para a base.
“Na pandemia fomos olhados como o local para onde ia tudo o que não interessava ou que não tinha solução. E fomos tratados como se a nossa atividade fosse dispensável.”
O projeto da Direção Executiva do SNS de organizar os hospitais e os centros de saúde em ULS pode ajudar?
É difícil ter uma posição preto no branco. O modelo das ULS, na base, tem conceitos inatacáveis: a integração de cuidados, a racionalização de recursos, a melhor comunicação entre profissionais, a proximidade entre todos... O problema é a forma como isso tem sido executado. Mais uma vez, em muitos locais, a execução coloca os cuidados primários numa posição subalterna em relação aos cuidados hospitalares. Há locais em que os cuidados primários nem têm um diretor clínico dedicado.
Mas supostamente terão de ter um clínico da área hospitalar e um diretor clínico da área dos cuidados primários, que estarão na hierarquia em igualdade de circunstâncias.
O problema é que há casos em que essa função foi acumulada pelo mesmo profissional. É preciso garantir que os cuidados primários não vão servir para tapar buracos. Quando há um problema no orçamento do hospital, não podemos ir aos cuidados de saúde primários roubar esse orçamento para colmatar a falha do hospital. Se houver uma falha de recursos humanos no hospital, não podem ser os médicos de família a irem resolver esse problema.
Diz-me, então, que a receita de sucesso para o modelo são as lideranças.
Claramente. É um modelo que depende muito das lideranças.
E o modelo C, de que se voltou a falar?
O modelo C está previsto na legislação desde o início da reforma [dos cuidados primários] e sempre esteve previsto que funcionasse como último recurso, válvula de escape, quando o SNS não conseguisse resolver um problema. Qual é a questão? Nós não esgotámos o modelo B, ainda não o adaptámos aos dias de hoje. Portanto, o modelo C pode funcionar em alguns locais, quando tudo o resto não funcionar, mas não nos parece que seja a solução universal. Também não nos parece que haja vontade política de avançar com qualquer coisa semelhante.
O problema é sobretudo de organização?
A reforma baseava-se sobretudo em princípios de autonomia, de flexibilidade e de responsabilidade. Isso raramente foi dado às equipas. Repare: como é que nós temos um colega do norte do país que vai trabalhar para Lisboa, 40 horas por semana, sendo que as mesmas têm de ser distribuídas por cinco dias úteis? E se ele não quiser trabalhar cinco dias? E se ele não quiser trabalhar 12 horas por dia? Nós temos muita dificuldade a nível público de ter esta agilidade e resposta.
Então na opinião da Associação de Medicina Geral e Familiar, o que é que é mais urgente?
Temos de dividir isto em cinco partes. Uma delas já falámos: a parte da remuneração tem de ser mexida, nomeadamente nivelar por cima a componente remuneratória, com uma melhoria clara das condições de trabalho. Outro eixo é a aposta na carreira médica, que anda moribunda há anos. Precisamos de uma carreira muito mais célere, baseada no mérito e com um sistema de avaliação adequado. O terceiro eixo é a questão da flexibilidade e autonomia das equipas. Isso é fundamental.
Com o fim das ARS não se caminha para isso?Vamos ver. Estamos sempre abertos à mudança desde que seja para melhorar as nossas condições de trabalho. As ARS tornaram-se organismos muito burocráticos, muito difíceis de gerir, desfasados da realidade no terreno. Depois, o quarto eixo tem de ser a diminuição da burocracia. Nós não precisamos de declarações para tudo e para nada. Foi agora dado um primeiro passo com a alteração das autodeclarações de doença e tem de continuar a haver uma aposta na simplificação da nossa atividade. E por fim, o último eixo, são as nossas condições de trabalho nas unidades. Já nem falo das instalações, porque aí o PRR [Plano de Resolução e Resiliência] estará a resolver em alguns locais. Falo, sim, de sistemas de informação.
Não existe um sistema único a que todos os profissionais do SNS possam aceder para saber do histórico do doente.
E não só do SNS. Esse sistema deveria acompanhar o doente para todo o lado. Se hoje estou no médico de família e amanhã vou a um médico privado, o médico privado tem de saber do que se passa e eu a seguir tenho de saber o que aconteceu no médico privado. Isso não acontece. Um utente vem à nossa consulta e nós ainda temos de andar para trás e para a frente, a descobrir o que o utente fez num certo episódio de urgência, nas análises que fez, numa consulta num outro hospital. Isto consome imenso tempo. Andamos aqui todos a perder tempo. Falta-nos dar este passo. Caso contrário, é como se tivéssemos ainda o processo em papel fechado no centro de saúde e fechado no hospital.