Os portugueses habituaram-se a dizer de si próprios que são católicos: 80% declararam-se como tal nos Censos, mas os praticantes são uma minoria. Retrato de um país e da sua Igreja à beira da JMJ.
Se nos focarmos apenas nos números, a conclusão imediata será que a Igreja Católica em Portugal está bem de saúde e recomenda-se. Afinal, segundo os Censos de 2021, 80,2% da população portuguesa declara-se católica. E nem sequer se viu no mais recente recenseamento da população efeitos da propalada erosão da pertença católica, porquanto em 2011 a proporção dos que se declaravam católicos era de uns ligeiramente acima 81%. Mas os números também enganam e, como enfatizou ao PÚBLICO a teóloga Teresa Toldy, não é preciso deslocarmo-nos às igrejas cada vez mais vazias na hora da missa para percebermos tratar-se de um catolicismo herdado ou cultural.
“As pessoas dizem-se católicas, mas depois, quando vai ver quantas delas frequentam a igreja e cumprem os rituais e estão envolvidas em paróquias ou movimentos, observa uma disparidade brutal entre aquilo que se declara e o que se faz”, aponta a docente da Universidade Fernando Pessoa.
Pouco impressionada com o aparente fervor católico que reduz a 14% os portugueses que se declaram sem religião, ainda segundo os últimos Censos, Teresa Toldy recorda outros estudos que denotam a pouca correspondência entre a autodesignação como católico e o quotidiano concreto das pessoas. “Num estudo em que se perguntava, por exemplo, se consideravam que o facto de serem católicas tinha alguma coisa que ver com o pagamento de impostos, as pessoas respondiam maioritariamente que não”, descreve a teóloga. E conclui de forma lapidar: “A esmagadora maioria dos que se dizem católicos em Portugal não conhece sequer a doutrina social da Igreja.”
A discrepância entre o que se diz e o que se faz está também patente no estudo que, em Julho, o Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa da Universidade Católica Portuguesa (UCP) apresentou e que concluía que 56% dos jovens entre os 14 e os 30 anos de idade se dizem religiosos (católicos, maioritariamente), mas apenas um terço são praticantes, numa dissonância justificada maioritariamente pela discordância face a normas da prática religiosa. Fará sentido recordar aqui que, no ano passado, 60,2% dos bebés nasceram fora do casamento – 16,9% sem coabitação dos pais –, o que ilustra bem a perda de influência da Igreja enquanto instância norteadora dos comportamentos, nomeadamente ao nível da moral sexual e familiar.
Voltando aos Censos, os 80% de católicos ali apontados não andam também distantes dos 79,5% católicos que tinham sido referenciados em 2011, num estudo sobre identidades religiosas em Portugal feito pelo Centro de Estudos de Religiões e Culturas da UCP, a pedido da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP). Em 1999, um estudo similar fixava em 86,9% a proporção de católicos na sociedade portuguesa e, concomitantemente, a percentagem de pessoas sem qualquer religião tinha aumentado de 8,2% para 14,2%, entre 1999 e 2011.
Em 2018, um estudo similar, mas circunscrito à Área Metropolitana de Lisboa (AML), reduzia os católicos a 54,9% dos inquiridos, numa quebra da hegemonia católica decorrente da estabilização das minorias religiosas, como os budistas e os muçulmanos, mas que dificilmente é extrapolável para outras zonas do país – à excepção talvez do Algarve – por se tratar de um fenómeno que acompanha a população imigrante em redor da capital do país. Seja como for, na AML os crentes sem religião tinham aumentado para os 13,1%, muito acima dos 4,6% apontados no referido estudo nacional de 2011.
Em Portugal, descontada a emotividade inicial que levou alguns católicos a requererem a desvinculação formal da Igreja pelo modo como o clero se comportou face ao flagelo dos abusos sexuais, não existem estudos que permitam medir o impacto que a divulgação do relatório Dar Voz ao Silêncio teve, entretanto, no sentido de pertença católica. Uma sondagem de Julho do Centro de Estudos e Sondagens de Opinião da Universidade Católica para o PÚBLICO, RTP e Antena 1 mostrou que 68% dos inquiridos acreditam que a imagem da Igreja piorou no último ano, sem permitir, contudo, grandes extrapolações.
Mas pode-se admitir, como faz o antropólogo Alfredo Teixeira, em entrevista ao PÚBLICO publicada no passado domingo, que a estimativa de que pelo menos 4815 crianças foram alvo de abusos às mãos do clero português entre 1950 e a actualidade teve um duplo efeito. “É expectável que as pessoas mais distanciadas reforcem o seu descrédito face instituição”, começou por dizer aquele investigador, para concluir que “no universo dos católicos mais empenhados, ou dos católicos mais próximos das dinâmicas comunitárias e institucionais, o acontecimento foi sobretudo aproveitado para introduzir na própria Igreja uma pressão para a mudança”.
Essa reivindicação de uma Igreja mais próxima da abertura preconizada pelo Papa Francisco está bem patente na síntese que o presidente da CEP, D. José Ornelas, levou, em Fevereiro, à assembleia continental europeia do sínodo dos bispos e onde os católicos portugueses reclamaram uma Igreja mais capaz de acolher os novos figurinos familiares, de garantir a participação das mulheres em “igualdade de oportunidades”, de ponderar a ordenação de homens casados e de adaptar a linguagem litúrgica aos tempos actuais, entre outras mudanças.
Mas o presidente da CEP “não é o chefe dos bispos portugueses”, como recorda Teresa Toldy. E entre estes não faltou quem apontasse como pouco fidedigno o tom progressista das conclusões levadas por D. José Ornelas a Praga, na República Checa. É que, “tal como na insistência em desocultar a dimensão dos abusos sexuais, o presidente da CEP tende a estar pouco acompanhado no seu esforço de mudança”, considera a teóloga, cuja esperança reside na expectável renovação dos bispos à frente das dioceses. “Vários dos actuais bispos estão a atingir o limite de idade e, portanto, vão ter de sair. E o que se espera é que os novos bispos que venham a ser nomeados sejam mais abertos e que deles possa advir um maior apoio ao esforço de renovação”, acrescenta.
Além de Setúbal, que aguarda há mais de um ano e meio pela nomeação de um novo bispo, as dioceses de Guarda e Beja também vão ficar sem bispo, no primeiro caso porque D. Manuel Felício já completou 75 anos e pediu a resignação e, no segundo, porque D. João Marcos tem problemas de saúde. O cardeal-patriarca D. Manuel Clemente deverá ser substituído ainda este ano e os bispos Antonino Dias (Portalegre) e Manuel Quintas (Algarve) atingirão igualmente a idade máxima que os obriga a pedir a resignação – 75 anos – este ano e no início do próximo.
JMJ não pode ser “esponja”
Enquanto estas mudanças não ocorrem, recupere-se o que dizia o relatório da comissão liderada por Pedro Strecht sobre os bispos que compõem a elite da Igreja Católica portuguesa: são um corpo envelhecido – a média etária é de 67 anos –, com origens humildes e rurais, provenientes quase todos de “famílias tradicionais com princípios morais vigorosos”. Na maior parte dos casos, a descolagem do meio social de origem fez-se por via da entrada precoce no seminário, onde cresceram sob o jugo de uma disciplina rígida imposta por uma hierarquia muito vincada e fechados ao exterior, ainda segundo o relatório.
“Isto ajudará a explicar que tantos dos bispos portugueses vivam um bocadinho fora do mundo e com dificuldades em ouvir os outros. Aliás, um dos aspectos que me parecem graves no funcionamento da Igreja portuguesa é a dificuldade que muitas pessoas sentem em falar com o seu bispo, em fazerem-se ouvir, muito por causa desta ideia de que o clero tem de ensinar o povo”, lamenta Toldy.
Um clero cada vez mais rarefeito e envelhecido e uma dinâmica pastoral estagnada são outros dos “pecados” que Teresa Toldy aponta à Igreja Católica portuguesa. Diz-se esperançada que, daqui a alguns meses, não seja forçada a acrescentar um outro pecado a esta lista: “Espero que a JMJ não seja entendida pela Igreja Católica em Portugal como uma espécie de passar de esponja sobre um ano terrível e sirva de desculpa para se deixar de falar dos abusos sexuais.”