7.12.08

Quando tudo falha, ainda há um prato de comida

António Pedro Pereira, in Diário de Notícias

Novo pobre. Ordenados que encolhem, preços que disparam, dinheiro que não estica. Cresce o número de pessoas que, para manter a dignidade de pagar as contas, ficam sem o que comer. Foi nesse papel que o repórter do DN foi ver como poderia alimentar-se sem ter de ser um sem-abrigo, ou um indigente. A resposta é um misto de esperança e de humanidade no seu melhor. A sociedade precisa destes sinais; as bocas, de alimentos


"Estás bem?", diz maquinalmente uma senhora sorridente de aparentes 40 anos a um trintão desdentado, sentado no refeitório da Santa Casa da Misericórdia, na Avenida Almirante Reis, aos Anjos. Na muito simbolicamente designada CASA - Centro de Auxílio Social dos Anjos. Andam os dois ao mesmo: comida. Todos comemos, nem todos temos à mão o que comer. Mas há uma mão que nos alimenta quando tudo falha. "Bem? Bem está-se no céu, aqui é bera", responde desalentado. E é. Mas o prato de comida estará à sua frente daqui a pouco quando a senha que tirou da máquina lhe indicar ter chegado a sua vez. Agora e enquanto precisar. "Hoje é dia de peixe", alerta a mesma senhora, torcendo uma cara de traços asiáticos (reminiscências de Macau?). Peixe assado no forno, arroz branco, salada, maçã assada, iogurtes, fruta (maçãs e laranjas, pelo menos), pão. Água. Sopa - estava reconfortante, apesar do dilema de ter de a comer sabendo que há quem realmente precise dela. Ossos do ofício, boca de profissional inquieto, não entra mais nada, talvez a maçã, chegará quem venha com fome e sem o que comer em casa, ou na rua onde dorme.

"Novos pobres" é uma designação que tem sido adoptada - precisamos de dar nomes a tudo, novos pobres, está bem - para casos emergentes de pobreza localizada, gente que trabalha, que paga a renda da casa, a água, a luz, as contas, mas não pode pagar ao hipermercado, ao supermercado, ao merceeiro. Que não trabalha sempre, mas mantém um tecto e não tem que comer. Há quem estenda um prato de comida, há quem ajude.

Som electrónico, piiiiiiii. O mostrador anuncia que chegou a vez da senha 59, série E (cada uma determina a ordem das cem pessoas que a compõem, passa de seguida para a F, não se viu em que letra acabou). O peito estremece, não pela primeira vez, mas agora de forma acentuada, chegou o primeiro confronto directo. "O cartão?", pergunta o funcionário que controla as inscrições - obrigatórias na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. "Não tenho. A assistente social só pode receber-me no dia 17", responde-lhe o repórter na pele de um novo pobre. Ao lado, está um sorriso tranquilizador: "Chegue-se aqui", indica uma senhora dos seus 50 anos. Chamemos- -lhe Maria dos Anjos (casualmente, acaba por se saber o seu nome verdadeiro, mas que interessa?). "E até lá passa fome? Não pode ser", corta, decidida. "Vai comer e depois vai lá [Santa Casa] e se não estiver a Dr. Ana [nome fictício da responsável pela área de residência] estará lá outra. Está sempre alguém", explica sobre a necessidade de inscrição para poder usufruir das refeições na CASA. A verdade é que isso se confirmou, a verdade é que está mesmo sempre alguém.

Não é vergonha pedir para comer

"Não precisa de ter vergonha de pedir o que comer", insiste Maria dos Anjos. (Há frases que ficam a retinir dentro do peito, que nos esmagam os preconceitos e nos dizem - mesmo para quem odeia o vocábulo -: "Não precisa de ter vergonha por pedir de comer." Esta frase, os sorrisos sinceros, a ajuda de facto, a certeza de que quando tudo falha, quando a sociedade se engole, ainda existe um último reduto. Para uma geração céptica, dividida pelos ensinamentos dos pais, forçados a valorizar as pequenas grandes coisas como a dignidade, saber que há pessoas que trabalham a ajudar realmente pessoas, sem contrapartidas maiores do que o salário, é um bálsamo. Vale a pena lutar, só é preciso escolher as armas. A palavra, o gesto, um prato de comida.)

A palavra sem um acto atrelado pode não valer grande coisa. Maria dos Anjos, enquanto ilumina com uma cara que acredita, escreve um bilhete. "Atender com urgência. Já recorreu ao refeitório da CASA." E, pacientemente, explica: "E não tenha vergonha. Leve este papel e logo vem cá jantar. Tira a senha por volta das seis, vai dar uma volta e depois vem comer, está bem?" "Sim." (Por dentro são só sombras, dúvidas, uma película de tristeza, dilemas morais e éticos - "há que denunciar, há que denunciar".)

Chegar a CASA


Chegara à CASA (todos queremos chegar a casa, nome certeiro, este) quando o relógio roçava as 12.30. Dezenas de pessoas com fome, ou necessidade de comer, esperavam a sua vez. À porta, debaixo do varandim de um prédio vizinho, na escadaria da Igreja dos Anjos. Gente com aspecto sujo, gente com roupa de marca, a ouvir música nos MP3 ou nos telemóveis, a fumar na rua, a conversar e a atenuar as carências com conversas animadoras - piadas, provocações. "O Governo do Estado não acredita que eu trabalho desde os dez anos", atira um homem de idade incerta, desgrenhado, desalinhado, sem dentes (vê-se um proeminente, nada mais). "Parece que ninguém acredita em ninguém", retribuo para manter a conversa. Novo assalto de emoção, a consciência profissional a tentar divisar que estragos fará na objectividade - a objectividade aqui é a vida, que não suporta a ficção, que é mais poderosa do que qualquer criação, que é a criação ela própria.

Acreditem em mim

"Mas eu faço com que acreditem", remata. Às 13.20, e depois de enredar a colher na sopa para possibilitar que o repórter fotográfico consiga imagens - faz parte da filosofia desta rubrica do DN -, estou almoçado. Chegara com necessidade de obter uma refeição meia hora antes. Já podia sair sem fome, com um salvo-conduto para continuar a comer nos próximos tempos, mas espezinhado por uma inquietante confirmação: as pessoas carenciadas não são personagens datadas, esfarrapadas, sujas, alcoólicas, toxicodependentes. Também são: ali ia um senhor bem- -posto, casaco Lightning Bolt; aqui está um grupo de três trintões, bem vestidos, piercings, estrangeiros; ao fundo da sala de espera, mais umas quatro ou cinco pessoas, podia ser uma delas. Visto-me como num outro dia de trabalho qualquer, ninguém repara em mim. Sou um deles, há muitos deles que são como eu, como nós todos os que não nos denunciamos pelo aspecto. A sopa dos pobres é comida para indigentes, para carenciados, para remediados, para jovens que pagam as artimanhas financeiras de senhores de fato e gravata e capachinho - quando a careca ficar à mostra, senhoras e senhores, serão bem recebidos, haverá um prato de comida, certamente, à vossa espera.

Burocracia Simplex

São agora 13.50, dependência da Santa Casa na Avenida Almirante Reis, em frente ao Café Império. "Reabre às duas", alerta o segurança. Pouco depois das duas, chega a funcionária. "A dr. Ana esteve cá de manhã, tem de ir à Rua Nova da Trindade, deve lá estar. Se não estiver, estará lá outra, com certeza", informa. Metro, Chiado, turistas, rua que sobe, portas que se abrem, Santa Casa da Misericórdia, Baixa. "Para fazer uma pergunta tem de tirar senha." É a número 43. Dez minutos depois, piiiiiiii, a máquina apita, chega o momento. Bilhete. "Tem de aguardar na sala de espera, já o chamo." Assim foi. "A dra. Ana recebe-o sexta-feira pela manhã." "Mas e a pergunta que a senhora Maria dos Anjos fez? Fico sem comer até lá?" "Ai é para refeições? Só um momento." Foi dois minutos. A assistente social aparece no corredor. "Entre, e peço-lhe desculpa pelas instalações", diz. Explica-se que a vida vai torta, é preciso comer, o dinheiro não chega para tudo. "Você não tem perfil para comer no refeitório dos Anjos, que é mais vocacionado para sem-abrigo. A solução para si passa pelo Banco Alimentar, que lhe entregará mantimentos em casa de 15 em 15 dias, por exemplo." Mas há sempre uma solução, um prato de comida para quem precisa. "Vou passar-lhe um cartão até final do mês, nessa altura vem cá e voltamos a falar. Traga-me estes elementos [escreve num papel: contribuinte, Segurança Social, recibo da renda da casa, recibo de vencimento, cartão beneficiário de saúde]." Atenciosa, vai amparando. E não lhe causa a mínima estranheza o meu aspecto urbano, aprumado, de certa forma. ("A geração do António vai à sopa dos pobres", dispara o meu cérebro. Angustia-me a ideia de estar a roubar tempo precioso a quem ajuda quem tanto precisa, quem não tem outro reduto.) Foi meia hora de espera para assegurar refeições até final do mês. Até ao dia 26, mais concretamente. "Vou estar de férias, mas não quero que tenha de ir aos Anjos muito tempo, como já viu o ambiente é pesado, ali", remata.

Os dilemas morais e éticos

Saio esmagado, o meu cinismo, ou cepticismo, é reduzido a cinzas, a condição humana ainda existe, há pessoas a ajudar outras pessoas, quando tudo falha, há sempre um prato de comida. E eu a tirar tempo precioso a uma pessoa preciosa - tem o poder de dar de comer a quem tem fome, não há nada de mais bonito na humanidade, é uma expressão de amor no conceito mais puro a que se pode ter acesso. Apetece-me voltar atrás e explicar porque menti, por omissão e não só; estou só a trabalhar, quero denunciar, tenho de denunciar; não posso, antes tenho de fazer o meu trabalho, tenho de relatar que o mundo reserva um último reduto, uma malha fina que ampara o peso da exclusão, que estende um prato de comida a quem é vítima da variação dos humores dos mercados de capitais, a quem paga os jogos na bolsa, nos bancos, com a dignidade profissional.