19.11.15

Elas ainda gastam mais do dobro do tempo em tarefas domésticas do que eles

Andreia Sanches, in Público on-line

É na cozinha dos lares portugueses que "os homens marcam presença de forma crescente". Mas a casa ainda é o grande palco da desigualdade de géneros num país que continua a valorizar o “vinco na calça e a comida sempre pronta”.

Devagar, “muito devagarinho”, porque quando se fala de mudanças neste campo tudo leva muito tempo. Os homens portugueses estão a participar mais na vida familiar. Mas “a família constitui ainda um palco de desigualdades de género persistentes”, mostram os mais recentes dados sobre a divisão de tarefas nos lares portugueses. Números de 2014, que nesta quinta-feira serão tornados públicos, revelam as seguintes médias: eles gastam oito horas por semana em “tarefas domésticas”, como passar a ferro ou fazer refeições, elas 21. Junte-se agora o tempo despendido nos chamados “cuidados a familiares”, desde logo aos filhos: eles 9 horas por semana, elas 17. Parece desequilibrado?

A disparidade era maior em 2002, garante ao PÚBLICO a investigadora do Instituto de Ciência Sociais (ICS), da Universidade de Lisboa, Karin Wall, que apresentará estes e outros resultados do International Social Survey Programme. No âmbito deste inquérito foi inquirida em Portugal, em 2014, uma amostra representativa da população nacional com 18 ou mais anos sobre o tema “família, trabalho e papéis de género”.

A apresentação decorre no ICS, num workshop internacional do projecto O Papel dos Homens na Igualdade de Género, que tem como objectivo produzir um Livro Branco sobre os homens, os papéis masculinos e a igualdade de género em Portugal — uma parceria do ICS e da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego que tem o financiamento do Programa EEA Grants e da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. Mas já vamos a este Livro Branco.

"Vinco na calça”
Regresse-se para já aos números. “Em 2002, no último inquérito, os homens portugueses gastavam sete horas por semana com as tarefas domésticas e as mulheres 26 horas”, diz Karin Wall. Nesse estudo não se questionava especificamente sobre o tempo empregue com cuidados a familiares, lembra. “Com as tarefas domésticas, houve em 2014 um aumento do tempo gasto pelo homens [para oito horas semanais], que estão quase ao nível dos nórdicos, que fazem 11, 12 horas por semana, e uma ligeira redução [para 21] entre as mulheres. Mas, em comparação com outros países, as mulheres portuguesas ainda usam muito tempo com as tarefas domésticas”, explica a socióloga.

Será porque as portuguesas contam menos com a ajuda de uma empregada doméstica? Karin Wall garante que não reside aí a explicação, “porque nos países nórdicos esse modelo da mulher-a-dias não é significativo”.

A verdade é que em Portugal “há uma cultura de bem-estar doméstico muito diferente”, que resulta de uma “socialização, de décadas, em que se insistiu no brio do trabalho doméstico, na necessidade do vinco nas calças e de ter a comida sempre pronta”, uma socialização “consistente até aos anos 70”, diz Wall, que passou de geração em geração. E que ainda subsiste.

Mas há sinais de mudança. Os dados do International Social Survey compilados na publicação Homens, papéis masculinos e igualdade de género, de Leonor Rodrigues, Vanessa Cunha e Karin Wall, preparada para o workshop no ICS, são claros: entre os casais mais jovens notam-se diferenças. “A cozinha é a dimensão da vida doméstica onde os homens marcam presença de forma crescente, quer dividindo tarefas, quer chamando a si a responsabilidade.”

Com efeito, mais de um quarto dos casais jovens dividem as tarefas relacionadas com a confecção das refeições. “E são 12% os casais [jovens] em que é o homem que cozinha sempre ou habitualmente, o dobro em relação ao total de casais.”

Karin Wall nota que já em anteriores inquéritos, a cozinha era uma espécie de porta de entrada dos homens nas lides caseiras. “Primeiro as compras, depois a cozinha, que é uma actividade valorizada, criativa.”

A equipa centrou-se, na sua análise, em “quatro tarefas específicas”: fazer reparações, cozinhar, tratar da roupa e tratar de doentes (ver infografia). “Os casais mais jovens têm de facto uma divisão menos desequilibrada das tarefas domésticas” e é “entre os casais dos 45 aos 64 anos que a desigualdade de género é maior e não nos casais mais velhos, provavelmente devido a um efeito de ciclo de vida, sendo os homens chamados a dar uma maior contribuição doméstica quando as mulheres começam a ter dificuldade em executar alguma tarefa”, lê-se.

Roupa: em 92% dos casais é com elas
Há, contudo, tarefas que permanecem pouco dadas à partilha. Descrevem as investigadoras: “As reparações constituem uma atribuição masculina, já que em 82% dos casais são os homens que realizam esta tarefa sempre ou habitualmente; e o tratamento da roupa é a tarefa em relação à qual estão mais arredados, pois são as mulheres que a realizam esmagadoramente (em 92% dos casais). Aliás, esta é a tarefa doméstica menos partilhada, pois apenas 6% dos casais” a dividem entre si.

Já noutros campos há mais divisão. Sobretudo nos cuidados aos doentes — com 47% dos casais a dizerem que partilham as actividades desse tipo.

O inquérito também questionou homens e mulheres sobre se “todas as tarefas domésticas” devem ou não ser divididas de forma igualitária. E 74% e 81,4%, respectivamente, acreditam que sim. “Estes resultados desvendam o desacerto entre a norma da igualdade a nível dos valores e as práticas dos casais que estão longe de ser igualitárias”, conclui-se.

De resto, no capítulo do trabalho remunerado, as diferenças entre horas gastas por homens e por mulheres são mais reduzidas. Mulheres que trabalham a tempo inteiro, por exemplo, têm em média horários de 36 horas por semana. Homens com o mesmo regime laboral chegam às 39 horas por semana.

Já o ganho médio mensal é, em valores ilíquidos, de 1093 euros para os homens e de 958 euros para as mulheres. Contando com salários e suplementos remuneratórios.

O Livro Branco sobre os homens, os papéis masculinos e a igualdade de género deverá incluir um conjunto de recomendações de políticas públicas a adoptar nesta área, explica Karin Wall. O ponto de partida é este: “Temos de perceber a realidade do ponto de vista dos homens para conseguir promover a igualdade. É preciso um enfoque nos homens, como é que eles vêem estas questões? Será que têm percepções diferentes da vida familiar? Será que acham que a mulher deve dedicar-se mais às crianças ou até querem entrar mais na vida familiar? Será que há obstáculos para que entrem? É claro que há.” Vários dados sobre os homens e a educação, o emprego e a família, que procuram dar resposta a algumas destas interrogações, estarão em debate nesta quinta-feira. As recomendações virão depois.