4.12.07

A gritaria de uma comunidade sem voz

Paulo Moura, in Jornal Público

Antes da chegada a Lisboa do seu Presidente, a comunidade nigeriana reuniu-se para eleger um líder que os represente, mas não conseguiu


O problema está sentado numa cadeira de plástico, de gravata cor de-de-rosa a condizer com as riscas da camisa, muito calado, como se não fosse nada com ele. Chama-se Alex Andrew John e é candidato à liderança da comunidade nigeriana em Portugal. Mas, ao mesmo tempo, ele é o motivo por que não se pode realizar a eleição. Ou o pretexto. Ao seu lado senta-se o candidato rival, Marcel Ifeanyi Ezenwa, de fato completo, formal. São amigos, ambos subempreiteiros da construção civil, e parecem alheios ao ódio espalhafatoso que opõe os respectivos partidários.
"Calma, meus irmãos, calma", diz Vincent Gideon, fato cinzento e sapatos brancos bicudos e enormes, o chefe do comité eleitoral, esbracejando para a multidão. À sua frente, no pavilhão da Voz do Operário, em Lisboa, estão umas duas dezenas de nigerianos, homens e mulheres, que ele não consegue controlar. "Calma. Vamos proceder à votação." Já estão todos sentados. O burburinho abranda, Vincent explica mais uma vez as regras: o voto é secreto. Cada um terá apenas de molhar o dedo na tinta negra e aplicar a impressão digital no boletim, junto da fotografia do candidato pretendido.

Mas alguém pergunta se é preciso assinar o boletim de voto, e alguém responde que sim, para que se saiba quem são os traidores que votaram em Alex, que não é nigeriano, uma vez que viveu na Serra Leoa, e alguém se levanta e desata aos gritos, e de repente há encontrões, voam cadeiras e está tudo a precipitar-se para a porta. Acabou a reunião, ninguém percebe bem porquê. Mas ficam a discutir, no pátio adjacente.

"Dizem que o Alex não é nigeriano, porque sabem que ele vai ganhar", explica Sara Fina, 26 anos e uma cabeleira postiça loura. Alex Andrew John pertence à etnia Ibo, que, na Nigéria, habita Benin City e as regiões rurais circundantes. O outro candidato, Marcel Ifeanyi Ezenwa, vem da etnia yoruba, oriunda da região de Lagos. Os ibo e os yoruba são duas das mais importantes "tribos" cristãs da Nigéria.
Sara Fina é ibo. A maioria dos imigrantes nigerianos é ibo por uma razão simples: os ibo são mais pobres, e não puderam ficar. Em Portugal, os yoruba são menos, mas mais ricos, tal como na Nigéria. Já trouxeram dinheiro com eles, e estão bem relacionados, explica Sara Fina, que é prostituta na zona do Intendente. Os seus "patrões", que controlam o negócio e as relações mafiosas internacionais, são geralmente yoruba.

"A maioria vai votar no Alex. Mas os da comissão eleitoral, que ninguém elegeu, querem que ganhe o Marcel", explica Sara Fina. Por isso lançaram o rumor de que Alex não é nigeriano.

Sara Fina é um pseudónimo. Escolheu-o quando viu um filme cuja protagonista, Serafina, era uma mulher que lutava pela sua emancipação. Chegou à Europa há 6 anos, através de um contrato com a máfia, a quem teve de pagar uma dívida de dezenas de milhares de euros. Mal chegou a Portugal, há 3 anos, pediu autorização de residência, entregando todos os documentos (uns mais autênticos do que outros), mas ainda não obteve resposta. Sem papéis, não conseguirá um emprego normal, e terá de continuar a prostituir-se. Aos poucos, está a afastar-se do mundo sórdido do Intendente. Arrendou um apartamento em Fetais, depois no Beato. É inteligente e dinâmica e a sua vida já é normal em tudo, menos no trabalho: todos os dias, a partir das 7 da tarde, apanha um autocarro para o Intendente, em cujas pensões repelentes faz sexo por 15 euros. "Quando tiver os meus papéis, arranjo emprego facilmente, num cabeleireiro, ou numa loja", diz ela. Já se livrou da mafia, só falta convencer o Estado português.

Um espelho da Nigéria

É para resolver problemas como os de Sara Fina que é preciso eleger um líder da comunidade. Todos o sabem e querem e por isso voltam à sala. Afinal, a reunião está marcada há mais de um ano, com adiamentos sucessivos. Tentam acalmar-se, mas logo se agitam, por ondas. Um homem baixo e discreto diz qualquer coisa, ao fundo da sala, e levantam-se subitamente dezenas de mulheres em algazarra, espancando o homem com as carteiras coloridas. Acalmam. Um jovem gordo com uma camisola de basebol nº 42 e ténis vermelhos fosforescentes entra e dá um grito para a plateia fazendo todos levantar-se e correr para a porta. Acalmam. Um homem de fato branco imaculado sobe para uma cadeira e começa a cantar fazendo imediatamente levantar um grupo de umas 30 mulheres a cantar "Aleluia! Aleluia!", dançando e batendo palmas. Acalmam.
Enquanto isto, os candidatos concedem entrevistas ao PÚBLICO. "As relações entre a União Europeia e África devem pautar-se pelo desenvolvimento de parcerias comerciais", diz Ifeanyi Ezenwa. "A África tem coisas que a Europa não sabe."
Alex Andrew John refere-se aos problemas da embaixada nigeriana: "Eles não têm uma máquina de imprimir os passaportes, por isso, quando estes caducam, ficamos sem documentos."

O embaixador foi convidado e enviou um representante. É ele que tenta agora acalmar a plateia. "Em nome da embaixada, estamos aqui nesta reunião, porque temos respeito por vocês. Mas acontece que vocês não se respeitam a vocês próprios", começa.
Uma mulher de chapéu e óculos escuros, botas de couro e vestido de veludo vermelho decotado levanta-se e diz: "Desculpem!"

O representante continua, ladeado por um jovem entroncado com uma t-shirt a dizer "special agent": "O nosso Presidente vai chegar e é preciso eleger um líder porque, senão, ninguém o recebe. É preciso estarmos unidos, não importa a região de onde vem cada um. O embaixador não quer nem tem autoridade para vos deportar. Só a Polícia e o SEF o podem fazer, por isso precisamos de um líder para falar com eles. Não queremos que ninguém vá embora, porque sabemos que vocês são pessoas maravilhosas que estão aqui para melhorar as vossas vidas."
As pessoas gritam: "Obrigado! Obrigado!"

"Sabem porque temos problemas na Nigéria? Porque, lá, nos comportamos como vocês se estão a comportar aqui. Isto é um reflexo do que se passa no nosso país. Por favor, em nome de Deus, respeitem-se a vocês próprios. Vamos eleger o nosso líder."
Aplausos. Cânticos. Gritos de agradecimento. Acalmam. A eleição vai finalmente realizar-se. Vincent diz: "Alguma pergunta?" E alguém se levanta, apontando para Alex John: "Aceitamos candidatos da Serra Leoa?" Parece ser a deixa que Vincent esperava. Leva as mãos à cabeça e desata a guinchar, às voltas. Corre para a bandeira da Nigéria na parede e atira-a ao chão. Bate repetida e violentamente com um ferro numa mesa, aos gritos: "A eleição está cancelada!"

Tudo se levanta. Gritaria. Encontrões. Cadeiras pelo ar. Bebés a chorar. Murros nas paredes. Correria para a porta. Agora é de vez. A eleição foi... adiada.
São quase 7h00, Sara Fina corre para o Intendente.