Ana Brito, in Jornal Público
Aos agricultores e comerciantes de que falou o Presidente podiam juntar-se pescadores ou pensionistas. Cada um sofre, à sua maneira, "o embate de dez, 15 anos" de políticas negligentes
Pequenos comerciantes e agricultores. São mais de um milhão os portugueses "frequentemente esquecidos" que o Presidente da República quis lembrar ao país na mensagem de Ano Novo. Num discurso voltado para as fragilidades da economia e as dificuldades de 2009, as palavras de "solidariedade" de Cavaco Silva foram também para os desempregados e para os quase 69 mil licenciados que continuam sem conseguir entrar no mercado de trabalho.
Mas o Presidente não deixou passar em branco "os tempos difíceis" de quem vive da agricultura e do pequeno comércio. Uma escolha que não surpreendeu os analistas ouvidos pelo PÚBLICO, mas que deixa de fora outros "grupos vulneráveis", como os pescadores, os reformados e pensionistas, e aqueles que, mesmo tendo emprego, não têm rendimentos suficientes para escapar à condição de pobreza.
"Nenhuma das escolhas me surpreendeu", disse ao PÚBLICO o presidente do Conselho Económico e Social (CES), Alfredo Bruto da Costa. Segundo o antigo ministro dos Assuntos Sociais, "se o problema dos licenciados é muito preocupante, mas mais conhecido, os outros são, de facto, esquecidos".
Também o sociólogo António Barreto não tem dúvidas que os portugueses que vivem do pequeno comércio e da agricultura familiar enfrentam "muito sérias dificuldades" e que "em período de crise vão sofrer imenso". E concorda que, "com aquilo que se conhece das políticas actuais, são grupos para os quais é necessário chamar a atenção".
Grande desperdício
No caso da agricultura, a que optou por juntar a floresta e as pescas, Barreto frisa que o sector sofre "o embate de dez, 15 anos" de políticas negligentes em que "os esforços foram colocados na diminuição da produção e no afastamento de pessoas da actividade".
Afirmando que nos três sectores "houve grande desperdício", acrescenta que "Portugal pediu dinheiro à Europa para investir em estradas, indústrias e telecomunicações e fez uma troca". E, nessa medida, "os governos de Cavaco Silva foram co-responsáveis por esse trade-off entre Portugal e União Europeia", assegura, assim como foram responsáveis pelo crescimento excessivo do número de universidades, públicas e privadas, no país e que se reflecte agora na falta de saídas profissionais para muitos dos novos licenciados.
"Foi um erro de há 20 anos não se ter apostado no ensino profissional, que continua a ser visto como um ensino de segunda", ao contrário do que acontece noutros países da UE, diz o sociólogo e colunista do PÚBLICO.
Bruto da Costa lembra outro problema ligado à agricultura: o da "ruralidade e dos grandes desequilíbrios entre o litoral e o interior", dizendo encarar a "perspectiva territorial" como mais uma forma de identificar grupos vulneráveis.
Insistindo, à semelhança de Barreto, na necessidade de distinguir entre os grandes agricultores que têm aproveitado os fundos comunitários e aqueles que, sendo a grande maioria, produzem para subsistir, o director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Boaventura Sousa Santos, considera que o Presidente deveria ter sido mais claro neste ponto. Porque "os pequenos e médios agricultores são, de facto, quem paga a factura da crise", diz o sociólogo.
Crises sociais
E nota que os estudos dos últimos anos "têm demonstrado que é graças à agricultura familiar que as crises económicas não se transformam em crises sociais de grandes proporções." Pelo simples facto de que "a agricultura mata a fome".
No caso do pequeno comércio, os três analistas concordam que o problema do sector nasceu da falta de políticas de equilíbrio entre as grandes superfícies e o comércio tradicional, nomeadamente o incentivo dos sucessivos governos à construção dos grandes espaços comerciais nos centros urbanos. Um problema que os pequenos comerciantes "não tiveram capacidade de combater com a modernização e reconversão das suas actividades" e que os colocou numa situação particularmente fragilizada.
E se Bruto da Costa considera que o Presidente poderia ter incluído na sua mensagem os pensionistas, que "são mais de um terço da pobreza do país", e os portugueses com emprego, mas com rendimentos insuficientes, Sousa Santos acrescenta à lista "os desempregados de várias gerações". E pensa que Cavaco Silva deveria ter sido mais claro quanto às proporções que o desemprego vai assumir no próximo ano.
"Quem perder o emprego agora vai esperar em média mais meses para conseguir recuperá-lo. E quando o fizer será um emprego com piores condições e menos direitos", vaticina.
"A situação é terrível e os alertas podem pecar por tardios"
Rui Tadeu, 52 anos, agricultor em Trás-os-Montes
Rui Tadeu, produtor de queijo Terrincho com explorações agrícolas em Vilas Boas e Lodões, no concelho de Vila Flor, não ouviu, em directo, a mensagem de Ano Novo do Presidente da República, mas confessa ter sido "uma agradável surpresa" a referência que Cavaco Silva fez aos agricultores. "Felizmente que olha para um sector que é fundamental para a própria identidade nacional", diz.
Natural do Porto, Rui Tadeu foi um dia dar aulas para Vila Flor e acabou por ficar, trocando o ensino pela agricultura. Aos 52 anos, leva já cerca de três décadas ligado ao espaço rural transmontano. Faz queijo, produz azeite e vinho e possui uma unidade de turismo rural. Conhece como poucos o labiríntico mundo das ajudas agrícolas e do calvário que os agricultores passam para as receber, é um empreendedor nato, não desarma facilmente perante as adversidades, mas confessa-se muito pessimista. Sobretudo porque os rendimentos dos agricultores estão a ser depauperados, com os factores de produção, como os adubos e rações de que falou o Presidente, a aumentarem e os preços dos produtos estagnados e em muitos casos a baixarem. Alguns comerciantes, como as grandes superfícies, "têm vindo a fazer propostas de preços absolutamente desonestas". "A situação é terrível", queixa-se.
A referência de Cavaco Silva ao prejuízo de que os agricultores portugueses estarão a ser alvo "face aos outros agricultores europeus" merece a sua inteira concordância. E justifica os atrasos no recebimento das ajudas europeias "com a falta de eficácia e a teia burocrática que rodeia a sua atribuição aos agricultores". Rui Tadeu diz que há uma grande desconfiança do Estado em relação aos agricultores. "Em vez de nos julgarem a posteriori, exigindo o cumprimento dos apoios, criam dificuldades burocráticas logo à partida que só geram imobilismo", acusa.
Como exemplo, refere o processo de candidaturas, no âmbito do Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN), para investimentos em explorações agrícolas e em projectos agro-industriais. O primeiro período de candidaturas terminou em 25 de Julho e o Ministério da Agricultura tinha 60 dias para responder aos concorrentes.
Mas as primeiras respostas só começaram a chegar em 6 de Dezembro e o segundo período de candidaturas terminava logo no dia 31 de Dezembro. Quem tivesse um projecto mal feito já não tinha tempo de o reformular. Para resolver o problema, o Ministério da Agricultura prolongou o segundo período de candidaturas até ao próximo dia 31 de Janeiro. "Isto mostra bem como os dinheiros disponibilizados pela União Europeia estão a ser mal aproveitados. O QREN foi aprovado em Janeiro de 2007 e dois anos depois ainda não foi utilizada qualquer verba na agricultura", critica.
Por tudo isto, Rui Tadeu considera que a mensagem de Cavaco Silva foi "uma óptima notícia", mas, ainda assim, receia que os seus alertas "pequem por tardios". Pedro Garcias
São os clientes que precisam de apoio, José Luís Alves, 57 anos, dono de uma mercearia em Lisboa
O Presidente tem razão: "Isto está mal, mas está muito mal é para quem compra." Dono de uma mercearia junto à Sé de Lisboa, José Luís Alves, de 57 anos, assegura que não é de chorar, "desde que vá dando para a sopa". Mas as coisas "estão beras", sobretudo para aqueles de quem sabe o nome e a vida apertada que levam: "As reformas só dão para os medicamentos, eles é que precisam de ser apoiados."
A mensagem de Ano Novo de Cavaco Silva não lhe desperta grandes expectativas. "A situação é como ele disse, mas nada irá mudar, há pouco a fazer", diz, com desalento. Porque não é de hoje que o negócio anda de mal a pior.
Há dois anos, levou uma grande machadada quando a câmara municipal decidiu fechar as ruas de Alfama. A Rua S. João da Praça ficou interdita a quem por lá não more. "Os clientes antes ligavam-nos para pedir as coisas pesadas, como as batatas e o leite, e passavam aí à noite para carregar o carro e só pagavam no fim da semana, mas agora não o podem fazer e preferem ir ao hipermercado", relata.
Em 2008, tudo se agravou. "As pessoas ou não têm dinheiro ou andam com medo de o gastar, não sei." Mas quem realmente o preocupa são os seus clientes de sempre, os seus vizinhos de uma vida inteira. Herdeiro de uma mercearia centenária, adquirida pelo seu pai nos anos 50 do século passado, convive todos os dias com as ginásticas que as reformas exíguas exigem a quem delas depende.
"Aqui, a maioria dos habitantes são de idade, mal têm para os medicamentos", conta. Não quer subsídios nem nada disso: "O que eu queria é que os meus clientes tivessem melhor nível de vida, era disso que todos nós, que estamos no pequeno comércio, precisávamos."
Mas duvida que isso aconteça: "Em todo o lado, a tendência é para fechar, há-de ficar um único estabelecimento, indiano ou paquistanês, como aconteceu em França." Conta que no Mercado Abastecedor da Região de Lisboa, onde vai buscar o que revende, o desânimo é unânime. "Já há mais vendedores que compradores, todos se queixam." E admite que há "muita tendência" neste ramo para chorar. "Mas olhe que eu não sou disso." José Luís Alves é realista.
Poderia abrir mais horas, apesar de trabalhar das 7h00 às 22h00, mas isso implicaria mudar o calendário, o que levaria a que tivesse de pagar mais impostos. "Não dá." Acha que terá de fechar? "Não", responde. Irá esperar pela reforma. A não ser... "Se ganhasse o Euromilhões, ai aí, logo no dia seguinte estaria de porta fechada." Ana Fernandes
Excluída por ter uma licenciatura, Carla Vinagre,21 anos, licenciada
no desemprego
Foi por ter uma licenciatura, concluída no Verão passado, que Carla Vinagre se viu "automaticamente excluída" até da mera possibilidade de vir a ser candidata a um lugar na Câmara Municipal de Lisboa (CML). Confirmada em Outubro, quando concluiu um estágio curricular de três meses na Divisão de Programação Cultural da CML, esta experiência definidora só lhe custou mais porque tudo o resto - ou seja, o trabalho que lá fez - tinha corrido "muito bem": "Aprendi bastante."
Mas em situação de estrangulamento financeiro e apesar da falta de qualificação do seu pessoal ser um dos problemas identificados (o grupo mais numeroso tem a antiga quarta classe), na CML terá passado a ser apresentada como "expressamente proibida" a contratação de licenciados. Foi o que lhe disseram, dando-lhe conta de que isto tem a ver com patamares de vencimentos. E na administração local as habilitações contam para este efeito.
Na sua mensagem de Ano Novo, o Presidente da República referiu-se a pessoas como Carla: os jovens que, "tendo terminado os seus estudos, vivem a angústia de não conseguirem emprego". Foi um dos três grupos que escolheu para ilustrar os tempos difíceis que o país atravessa. Segundo dados do INE, no final do ano passado, entre os desempregados, cerca de 69 mil estavam à procura de primeiro emprego. Em quase duas décadas, este número só foi ultrapassado em 1995, o último de dez anos de Cavaco como primeiro-ministro, e nos dois seguintes, que foram os primeiros do Governo de António Guterres.
Carla Vinagre ouviu o discurso de Cavaco e subscreve a escolha feita: "Faz sentido incluir-nos, e é um sinal de que o grupo está identificado e de que é preciso tomar medidas." Mas pensa que o Presidente poderia ter ido mais além: "Limitou-se a constatar um facto. Teria sido mais importante que tivesse apelado directamente às empresas e Governo para que mudassem, por exemplo, as políticas de contratação."
No final do ano passado, ainda segundo dados do INE, entre os desempregados, cerca de 69 mil tinham um curso superior concluído. Há dez anos eram à volta de 15 mil.
Licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa, Carla Vinagre, que vive em casa dos pais, prepara-se agora para fazer o que têm feito muitos outros diplomados à procura de emprego: iniciar um mestrado. Entretanto está a responder a anúncios, a enviar currículos, a ir entrevistas - já conta com uma dúzia. Não tem respostas, mas está optimista. Tem 21 anos. Clara Viana