Leonor Paiva Watson, in Jornal de Notícias
Um exemplo no combate à pobreza servindo de plataforma de reintegração
A revista "Cais" cumpre este mês 15 anos de existência. Com o objectivo de estabelecer uma ponte para a reintegração social dos sem- -abrigo, tem uma tiragem média de 13 mil exemplares por mês e, ao todo, já produziu quatro milhões.
Vendida na rua exclusivamente por pessoas sem-abrigo, a "Cais" apresenta-se como uma ocupação e um rendimento económico que permite ao vendedor reatar o laço com a sociedade, através do contacto com os outros, evitando que mendigue, que roube ou que cometa pequenos crimes na falta de dinheiro.
"A ideia é que ganhem autonomia e voltem a acreditar. No fundo, a revista pretende ser uma ferramenta para permitir a reintegração, ou seja, ensina a trabalhar os horários, a responsabilização, a organização", diz Sílvia Azevedo, coordenadora da equipa do Porto.
Por cada revista que vendem, por exemplo, os vendedores ficam com 70% do preço da capa. O restante serve para comprarem mais exemplares para a sua posterior venda. "Trabalha-se assim a responsabilização", exemplifica a responsável. Do mesmo modo, têm horas definidas, no período da manhã, para ir buscar as revistas que vão comercializar. "O objectivo é ajustarem-se a um ritmo que perderam", diz.
Para alguém que viveu na rua e perdeu tudo, isto é espaço, emprego e afecto, a sua restruturação pode ser um processo deveras violento. "A pessoa tem de reerguer-se emocionalmente, mentalmente e socialmente", relembra Sílvia Azevedo. E muitos chegam com graves mazelas de saúde, como o alcoolismo, " um problema gravíssimo de resolver até porque o álcool é bastante acessível, barato e social".
Mas, o que leva alguém à rua? Uma qualquer dependência? Uma psicopatologia? "Tudo isso e ainda um facto tão simples como perder-se o emprego. Porquê? Porque basta não ter rectaguarda familiar", alerta.
Um sucesso garantido?
Se depois de chegarem à "Cais", o sucesso é garantido, depende. "E depende também da forma como cada um chega até nós", afirma.
Quem chega à "Cais" por sua livre vontade tem mais probabilidade, à partida, de vir um dia a transitar para uma forma de sustentação mais estável. Para quem é obrigado a vir e chega sinalizado por organismos sociais - porque tem um apoio social - a coisa já é mais complicada.
"Quem vem motivado já quer algo, mas para quem não tem motivação todo o trabalho tem de começar pela base, pela auto-estima, tentando contornar-se a autopiedade e a desculpabilização. Claro que há pessoas para quem o nosso melhor nunca chega. No limite, depende delas", avisa.
Embora a venda da revista seja o grande veículo de contacto com o Mundo, os seus vendedores encontram outras plataformas de convívio dentro da associação. "Estão, por exemplo, nos ateliers ocupacionais duas horas por semana onde há escrita criativa, Inglês e ioga", pormenoriza.
Urge, no entanto, uma maior participação estatal. "Há dois anos que tentamos protocolar uma comunidade de inserção com mais técnicos e mais respostas no Porto. Mas os licenciamentos camarários demoram eternidades. Se a rede social do Porto nos envia pessoas, com as quais nós de-senvolvemos um trabalho, não seria justo que nos apoiassem um pouco mais?", questiona.