2.3.09

"A liberdade da rua é feita de fome e frio"

Leonor Paiva Watson, in Jornal de Notícias

Estas são três histórias de homens confrontados impiedosamente com o imperativo biológico: um corpo morre de fome. Homens que decidiram, no fim da linha, ver na "Cais" um cais, um ponto de partida...


Noé lembra-se bem da primeira vez que tirou comida de um contentor do lixo. A sensação foi de "incredulidade", diz. Não podia acreditar que a sua filosofia de vida tivesse tido aquele resultado.

"Queria viajar, conhecer o Mundo, viver em comunidade". E, por isso, mal acabado o liceu, fez-se à estrada insuflado de liberdade, em direcção a Londres, a Barcelona e… a casas desocupadas, a cenas de pancadaria em defesa do território, a afectos de meia hora, à certeza de que "o ser humano pode ser muito explorador da miséria alheia". A liberdade da rua era, afinal, "feita de fome e de frio", resume.

Duas décadas depois recomeça, em Portugal, na cidade do Porto. Aos 38 anos, vende a revista "Cais", procura incansavelmente emprego, vive com a mãe, fez-se utente da biblioteca Almeida Garrett. Sobrevive. Um dia de cada vez. "Eu tive mesmo uma sensação de fim. A idade pesou e quando olhava para os outros pensava que não tinha feito nada da minha vida, que tudo poderia ter sido bem diferente. Tinha pena de mim", conta. Noé fala com longos silêncios pelo meio. Fica com os olhos aguados, mas não cede à lágrima, oscilando muito entre a ideia de que se, por um lado, "foi tudo uma perda de tempo", por outro, "se arranjasse agora emprego, tudo teria valido a pena"…"Queria trabalhar num escritório e ter uma mulher, quem sabe filhos".

No final das contas, "ser regular" e guardar para si, sem que ninguém pudesse imaginar, as histórias de miséria, fome e idas aos contentores do lixo dos supermercados. "Vivi em casas devolutas, fazíamos ligações directas para termos electricidade e tínhamos esquemas para ter água. Comia em cantinas, mas, sim, em grupo cheguei a tirar comida do lixo que cozinhávamos depois. Da primeira vez, nem queria acreditar, mas estava em grupo. Eram casas sempre com muita gente, com problemas de álcool e drogas. E violência, muita porrada para definir quem mandava", pormenoriza. "Em Barcelona, tive cenas de pancadaria com um que arranjava trabalho nas vindimas. Só que ele acabava por ficar com o dinheiro que recebíamos".

Voltou a Portugal e ainda andou sem abrigo uns tempos, em grupo, a tocar música e a fazer capoeira. E, finalmente, chegou a tal sensação de fim. Noé decidiu que tinha de parar e pediu ajuda à "Cais". Todos os dias, calcorreia as ruas do Porto para vender a sua revista. Do total, retira um montante para comprar mais para o dia seguinte. O resto é para um café e depois, se der, juntar algum. "Se vender bem, faço 20 euros; seis são para comprar revistas para o dia seguinte. Mas não é fácil vender isso tudo. Ouve-se muito 'não'. As pessoas olham para nós e vêem um pedinte. É uma grande ajuda. Mas quero mais. Não quero ser visto como um pedinte, o que eu quero é ter um emprego".

Uma rampa de lançamento

Também para João Paulo, 37 anos, a venda da revista "é uma rampa de lançamento, um princípio", afirma. Mas acabam aqui as semelhanças com Noé. Enquanto aquele, jovem instruído de classe média, chegou às ruas da amargura pela ilusão adolescente de uma vida em comunidade, João Paulo nunca teve sequer qualquer filosofia de vida. Nasceu na pobreza e conhece de cor o seu carácter contagiante.

"A minha irmã está desempregada e vive do rendimento mínimo (Rendimento Social de Inserção). Tem cinco filhos. O meu cunhado também está desempregado e também quer o rendimento mínimo. Eu tenho o sexto ano", traduz. Até separar-se da ex-mulher, há três anos, "ia tendo trabalho, mas depois foi o descalabro", contextualiza. De repente, ficou sem casa, sem emprego. Foi para Espanha trabalhar, mas voltou um ano depois. Viveu uns tempos na casa da irmã, mas a pobreza é implacável. "Não podia tirar comida à boca dos filhos dela, o marido começou a implicar e dali ao banco de jardim foi um pulinho".

Procurar emprego nas obras não lhe passou pela cabeça porque "faz mal à coluna" e "hoje em dia, também não é garantido porque há sete cães a um osso, para quem não tem estudos". Do banco de jardim passou a viver nos escombros da Praça de Lisboa, no Porto, num cubículo subterrâneo com mais seis homens. "Dormíamos em papelões ou em colchões que encontrávamos na rua, com cobertores dados pelas carrinhas de voluntários. Comia no 'Coração da Cidade' e tomava banho na 'Casa da Rua' onde me era dada lâmina de barbear e toalha lavada. Dinheiro fazia-o a vender ferro velho", conta.

No fim da linha, bateu à porta da "Cais". Há dois meses que vende a sua revista. "Há dias em que o lucro são dois ou três euros", mas não pede nas ruas; voltou à casa da irmã "só para dormir" e já sente ânimo para "procurar trabalho". "Tenho é de juntar umas moedas para cortar este cabelo"...

E a sorte que às vezes falha

Mas nem só das ilusões de adolescentes pouco orientados ou da pobreza que se perpetua por gerações se fazem as histórias da rua. Nas suas pedras, está muitas vezes inscrita a fatalidade da má sorte. Que o diga Paulo Patrício, 45 anos, trabalhador incansável e dono de uma vontade férrea de viver.

Filho de classe média-alta, Paulo Patrício, nascido no Brasil, estudou vinte anos para fazer-se contabilista. Acabada a universidade, a vida não lhe correu mal até à conjuntura económica do país natal se deteriorar e ver-se a "pagar de condomínio metade do salário". Para sobreviver a uma crise galopante, decidiu emigrar. Há 17 anos, chegou a Portugal e de lá para cá fez de tudo.

"Como não consegui equivalência ao meu curso, fiz outras coisas. Trabalhei na construção civil, em adubos orgânicos, fui auxiliar de canalizações, trabalhei na limpeza de vidros, fui cozinheiro, enfim, nunca parei. Tive momentos melhores e outros piores, mas nunca estive parado, naturalizei-me português, fui para Viseu, casei, estive casado treze anos, tive sempre emprego, salário razoável, uma casa decente".

O problema de Paulo Patrício foi, afinal, "um divórcio muito complicado". "Saí eu de casa, fiquei sem nada e entrei numa depressão profundíssima. Enquanto tinha dinheiro, consegui ir vivendo. Mas o dinheiro que tinha guardado acabou e eu não tinha forças, nem família. De repente, fecharam-se-me as portas todas, não encontrei trabalho e decidi sair de Viseu. Vim para o Porto com o intuito de apanhar um avião para voltar ao Brasil, mas depois comecei a pensar que não poderia ir para o Brasil ser um fardo para os meus irmãos", conta.

Paulo Patrício acabou a pedir ajuda no Albergue Nocturno do Porto, mas logo percebeu que isso poderia ser um entrave para arranjar emprego. "No albergue, há hora de entrada à noite. Para trabalhar num restaurante, por exemplo, não dá. Não posso dizer ao patrão que tenho horas de entrada no sítio onde moro". Por isto mesmo, decidiu bater à porta da Cais, com o objectivo de vender revistas e ter um espaço seu. "Estou na Cais há um ano e já tenho uma média de vendas bastante razoável. É com isto que consigo pagar o quarto onde moro, a comida, o serviço de lavandaria. E consigo juntar algum dinheirinho ", conta. Com o tempo, assegura, " o ego vai sendo colocado de lado e fica o essencial". Mas Paulo Patrício não desiste de um emprego, de um outro trabalho, da vida que já teve, embora saiba que está numa luta contra o tempo, desigual, porque "a idade não perdoa".

Paulo Patrício, tal como entende que se deve ser, é persistente e qualificado. Só falta uma coisa, um pormenor que pode fazer toda a diferença: sorte. "É que na vida é preciso um pouquinho de sorte".