1.3.09

É possível rir no meio da fome e da guerra, é sim senhor!

Fernando Sousa, in Jornal Público

A praça estava animada quando rebentou a bomba. Didí assustou-se. Mas depois as crianças voltaram, como se estivessem num circo


O que é que há de comum entre uma praia de Gaza e um bando de miúdos em Kigali? Ou, dito de outra maneira: qual é a distância mais curta entre duas pessoas? O sorriso, segundo Jordi Baiget, que, tal como Georges Matichard, anda pelo mundo a arrancá-los de graça.

Imagine-se uma tenda azul virada para o mar no pequeno território do Hamas. Durante uns minutos não acontece nada. Mas depois alguém deve gritar qualquer coisa do género "vêm aí! Vêm aí!", e não está a referir-se aos israelitas. Ainda é Agosto de 2008. Ainda não chegou Dezembro, muito menos Janeiro. Ainda não há aviões nem soldados, nem bombardeamentos nem tiros. Ainda não começou a correr mundo a foto daquele miúdo palestiniano sentado na terra, a mão esquerda metida nos calções e a direita a apoiar a cabeça, à sombra do rodado de um carro esventrado.

E chega Didí, mais a sua trupe, a arrastarem malas. IhIhIhIhIh!! EhEhEh!! Trazem narizes vermelhos, bochechas cor-de-rosa, cabelos a explodir, calças XXL, axadrezadas ou brancas às bolinhas, meias às listas e bóias de praia ao pescoço. Ele é de repente o mais animado. Sopra numa gralla - um instrumento primo do oboé - para tirar sons sem jeito no meio de um nunca acabar de pantominices, de bate-cus. A tenda começa a abrir a boca e chegam os risos e as gargalhadas.

Bom, há gente que ainda não se ri: uma mulher grande de negro fica na mesma. Outra não se sabe: só se lhe vêem os olhos debaixo do véu.

Sorrisos iguais

E foi assim que Jordi Baiget, catalão, que cresceu a rir-se com Charli Rivel e a arrastar uma cadeira pela casa e a tentar sentar-se nela, tal como contou ao PÚBLICO, cumpriu uma das últimas missões dos Payasos Sin Fronteras.

Ainda foi ao outro lado, a duas povoações israelitas. Numa não o deixaram actuar - vinha do lado palestiniano. Noutra os sorrisos eram "iguais".

Mais um exercício. Agora estamos em Cabul, no Afeganistão. Matichard veste as suas calças três números acima, põe o nariz postiço, treina os trejeitos, os sons. A certa altura, pára, "apreensivo". Treinou muito no seu canto, mas assalta-o a dúvida de sempre: "Será que se vão rir disto?"

"Senhoras e senhores, os palhaços!" Ele e a trupe entram, o ambiente aquece, os miúdos gostam e os adultos também. Resultou. Este é sempre um momento diferente. Confundido entre os mais novos, "um velho barbudo afegão de olhar negro estala em risos como as crianças".

E foi assim também, tal como Baiget, que o francês Georges Matichard, dos Clows Sans Frontières, que há 28 anos trocou, com os quatro filhos, a cidade pelas montanhas de Cévennes, foi fazer rir muito, muito longe de Lozère, num país onde as únicas notícias todos dias são mais x talibans mortos, mais um soldado da força multinacional caído, ou como há mais campos de dormideiras do que antes.

Mas a profissão de arrancar risos pode ser perigosa - ou pesada. Didí teve o seu baptismo de fogo nos Balcãs, em 1993,e não achou piada nenhuma. Foi quando foi à Bósnia-Herzegovina. A região metia era medo. "De repente éramos um grupo de palhaços no meio do caos, a trabalharmos duramente e em condições adversas", lembra.

Ainda tem aquilo à flor da pele. "Um dia lançaram uma granada durante uma representação em Mostar [Leste]. Assistiam umas 800 pessoas, na maior parte crianças. De um momento para o outro desapareceram todos e nós ficámos imóveis e sozinhos no meio da praça, sem tempo de perguntarmos o que se estava a passar".

O que aconteceu depois foi tão rápido como a bomba. Exigiram-lhes que continuassem. Então ele pegou na sua gralla e voltou a arrancar sons sem jeito. As crianças voltaram. O espectáculo continuou e a guerra também, com sorrisos de um lado e rajadas de metralhadora do outro.

Mas pode haver pior - ou melhor, depende da perspectiva. Uma vez, estava na Serra Leoa, num hospital de Lunsar. Depois de visitar as instalações, de onde saiu "com o coração encolhido e um peso no estômago", foi ao encontro dos miúdos.

"Vê-los no pátio sentados no chão a agarrarem as bolsas de quimioterapia e a rirem-se é talvez uma das melhores lições de luta pela vida, e transformamos as nossas lágrimas e damos tudo." No fim "todos querem tocar-nos, abraçar-nos, e isso é o melhor que nos pode acontecer, no meio da tristeza, que é um banho de crianças, o palhaço incluído".

Um palhaço não chora

Lágrimas transformadas: "Creio que um palhaço nunca deve chorar à frente de meninos e meninas; para eles, chorar é sinónimo de dor e nós somos os embaixadores da alegria e do riso".

Com Matichard, foi em Cabul. E também ele nunca mais esqueceu. Entre as muitas recordações "incríveis", uma das mais fortes foi quando um dia representava no terraço de um edifício para meia centena de crianças, umas surdas-mudas outras sem um braço, ou uma perna, ou as duas coisas, por culpa da guerra.

"Uma criança que perdeu tudo continua a ser uma criança. O pior é quando é a própria imaginação que desaparece. Quando se perdeu tudo, pode-se ainda sonhar, esperar; mas, e quando já não se pode imaginar?"

Estas foram só algumas das missões dos Palhaços Sem Fronteiras, movimento iniciado há 16 anos na Catalunha com muito mundo já feito. Uma das últimas visitas foi a El Salvador, entre Janeiro e agora: 40 representações em escolas, creches, hospitais, centros penais e pequenas aldeias, para um total de 7 mil crianças.

"Em alguns casos, quando chegávamos às povoações, estavam à nossa espera empoleiradas nas árvores. Noutros, famílias inteiras fizeram trajectos de várias horas, a pé, para ver a nossa actuação", contou Júlio Pedrosa numa entrevista ao jornal digital Hoy.

Em Março vão a Montevideu, Uruguai. O programa inclui música, ilusionismo, magia. E a seguir vão a muitos mais sítios. Desde 1993 que é assim, num mundo cada vez mais pequeno, porque, diz Didí, "a distância mais curta entre duas pessoas é o sorriso".
"Todas as missões são diferentes. Mas ver do que é o homem capaz nas guerras, as suas atrocidades, as injustiças, ver como os mais fracos e inocentes são sempre os que levam a pior parte, é duro", contou por email ao PÚBLICO Jordi Baiget (na foto), catalão, que é membro fundador dos Payasos Sin Fronteras, criados em Fevereiro de 1993.

"E se a isso acrescentares a vergonha que sentes, o desgaste psicológico e emocional, mais alguma incomodidade, como a falta de duches, os insectos, os maus-tratos e os registos policiais, e outras coisas, ficas perturbado. No entanto e no fim acabas por te sentir compensado pelas milhares de meninos e meninas que se puderam rir graças a ti. [...] E rir é de graça."