5.5.09

A dormir numa fábrica abandonada com um acordo de inserção assinado

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Uma idosa assoma à porta do terceiro andar sem elevador. O assistente social José António Pinto pergunta se a técnica da Segurança Social telefonou por causa de um rapaz por alojar. "A senhora doutora falou. Chegou aí um rapaz e foi logo embora. Era meio-meio. Disse: 'Eu era rapaz, mas sou rapariga.' E eu disse: 'Não tenho nada a ver com isso. Quando quiser ir embora, vá!'" "É outro", retorque o assistente social da Junta de Freguesia de Campanhã, indicando-lhe Luís Sousa, uns degraus atrás. "Quanto é que pagam?", pergunta. "Ela disse 75 euros."

Luís recebe 190 euros de Rendimento Social de Inserção (RSI) desde Outubro de 2008. A 28 de Novembro assinou um acordo de inserção. José António Pinto chama-lhe "acordo estatístico": "Não há uma acção que contemple a saúde! E o que é que a Segurança Social fez para o ajudar a encontrar uma alternativa à rua? Nada."

Não é bem um quarto que a empregada da idosa mostra. É um hall. Há um colchão num catre de ferro com a tinta a fugir - por cima, umas tábuas a fazer de estante; ao lado, um espelho, duas mesas-de-cabeceira rudimentares. Uma cortina separa a cama do corredor, que conduz a uma casa de banho e a duas divisões, quartos de excluídos como Luís. "É um tecto", murmura.

Já viveu "em muitos cantos". Vive "em cantos" desde que o pai morreu: "Tinha 18 anos, tenho 40, já vê." Nasceu com síndrome fetal alcoólico. Os pais "apanhavam todos os dias uma ramada". O pai "chegava à noite, perguntava: 'Oh rapariga! Fizeste comida para a canalha?'" Não fizera. "Pegava na vassoura: pimba!" Não era só ela que apanhava. "Para bater não havia como ele!"

Era miúdo e já se perdia no vinho e no bagaço: "Bebia antes de ir para a escola. A minha mãe escondia a bebida e eu roubava-a. O meu falecido pai foi obrigado a tirar-me da escola. A professora disse que eu não tinha cabeça. Aos 14 anos estava na primeira classe!"

Foi-se desenrascando. Carregou batatas, carregou farinha, fez-se ao biscate: "Cavo terra, carrego uns sacos, faço uns recados." O assistente social da junta deu por ele no Verão do ano passado. Tratou de lhe arranjar documentos, de sensibilizar uma irmã a apoiá-lo, de lhe requerer RSI.

O acordo contempla apoio psicossocial, melhoria das condições de habitação, alfabetização. O Natal chegou e Luís a dormir na rua. Dormia há perto de dois anos na carcaça de uma fábrica: uma parede enegrecida, um chão de terra e erva, um tecto de placas irregulares: "Apanhei muito frio e muita chuva!" No princípio do ano, a Polícia Municipal apareceu. Toda a área está a ser requalificada. "Eles disseram: 'Isto vem tudo abaixo.'"

O técnico de Campanhã não achou vaga nos albergues. A 3 de Fevereiro, meteu-o no residencial Veneza, a 15 euros por dia. Negociou com Luís tratamento no Centro Regional de Alcoologia do Norte. E escreveu à coordenadora da unidade de Acção Social a solicitar apoio para a pensão.

Luís celebrou a mudança incendiando o colchão húmido e fedorento que lhe amortizava o sono. Já vira uma rapariga que se prostitui a usá-lo. Batera-lhe e não fora pouco. Naquele dia, deixou o colchão arder até restar apenas um esqueleto negro, encostado a uma parede, por baixo da janela emparedada ao lado da qual alguém escrevera: "I need to pii" (preciso de urinar).

Nunca chegou à Veneza a credencial do ISS. O assistente social insistiu, barafustou. Quem o autorizara a metê-lo lá?, questionavam-no. Ele tornou a insistir, a barafustar. O montante viria sob a forma de apoio complementar, mas Luís teria de ir para um sítio mais barato. A 14 de Março, transferiu-o para a Pensão Londres - 7,5 euros por dia. Queixava-se das prostitutas: "As meninas estão sempre a entrar e a sair. Elas gritam: 'Ai! Ai!' Aquilo enche a cabeça!"

A credencial do ISS tardava a chegar à pensão de sobe-e-desce. O dono já ameaçava metê-lo na rua. Terça-feira à tarde, 31 de Março, o técnico regressou à Segurança Social: "Disseram que mandavam credencial para a pensão até àquele dia. E indicaram-me um sítio mais barato", no centro do Porto.

Agora, à porta da idosa, José António Pinto disfarça a irritação. Luís desce a escada em silêncio - amanhã estará na junta de freguesia a suplicar para ficar na Londres, José António Pinto explicará à técnica do ISS que "nem um pastor-alemão metia ali" e ela passará a credencial para Luís ficar na pensão até 30 de Abril. A 27 de Abril passará outra, desta vez até 30 de Maio.

Sabia que a senhora alugava quartos, não conhecia a casa. Mas a Segurança Social já ali alojou muitos excluídos. "O último pagamento que a contabilidade registou àquela senhora foi em 2006", informará a presidência. Escasseiam respostas para excluídos como Luís. Os albergues não dão para as encomendas. E "as pensões, de uma forma geral, não aceitam alojar determinado tipo de pessoas", justifica o presidente do ISS, Edmundo Martinho. As que aceitam são manhosas "e inflacionam os preços".

A 14 de Março, foi apresentada uma Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas sem-abrigo, que visa criar "condições para que ninguém tenha de permanecer na rua por falta de alternativa". Só que essa estratégia, que passa por apoiar rendas em apartamentos, ainda está no papel.

Nem só as condições de habitabilidade importam. Luís fez toda a sua vida no Freixo, na zona oriental da cidade. Quando quer um café vai às bombas de gasolina. Há ordens para lho oferecer, não vá ele armar barraca. De vez em quando, explode e é um Deus nos acuda (embora nunca tenha estado preso pelas zaragatas, apenas por circular de comboio sem bilhete). Há um senhor que lhe dá um garrafão de vinho por semana. Luís bebe uns dois litros por dia. "Comida arranja-se sempre." Há uma cigana atenta: "Quando ela precisa de alguma coisa eu também faço."