Ana Cristina Pereira, in Jornal de Notícias
Depois de quase seis anos, Carlos Evangelista desiste do sonho europeu. A sua história e a da sua família são a prova das dificuldades para se obter a autorização de residência em Portugal
Carlos Evangelista embala a filha entregue a um choro súbito. A criança nasceu há quatro meses em Portugal. Talvez ela pudesse ajudar os pais e a irmã a regularizar a situação em território nacional. O pai está tão cansado que já nem quer tentar. "Vou para o meu país!"
O rapaz moreno de longos cabelos negros que agora embala a filha aterrou em 2003. Falava a língua, tinha amigos a morar em Vila Nova de Gaia para o receber e para o encaminhar: "Achava que ia ter papéis, trabalhar, ganhar mais dinheiro. Mas, quando cheguei, já tinha fechado a lei de Lula", um acordo assinado em 2003 entre os governos de Portugal e do Brasil que previa regularizar, em cinco anos, a situação de todos os brasileiros que tivessem entrado no país até àquela data e tivessem um contrato de trabalho válido.
Não fez as malas nem tornou à Bahia. Acreditou que, mais tarde ou mais cedo, regularizaria a sua permanência em Portugal. Decorrida uma semana, já vergava na construção civil: trabalhava ao metro, para um subempreiteiro português, numa obra da Catalunha (Espanha).
Sentia-se explorado. Ganhava "três euros e qualquer coisa" por cada metro de tijolo ou azulejo posto. Aguentou quatro meses. Quis "arranjar melhor". E arranjou: um contrato com uma empresa portuguesa subcontratada para fazer uma obra na Andaluzia. Desta vez, ganhava à hora.
O bebé sossega nos braços grossos do pai. O electricista permanece de pé, a porta permanece aberta. Primeiro, respostas curtas, secas. Pouco a pouco, respostas mais compostas.
Não exerce a sua arte desde que deixou o Brasil. Na Península Ibérica, assumiu sempre o papel de pedreiro. E a mulher, que agora cruza a porta, entregou-se à limpeza, apesar de ser professora.
"É um choque", diz ela, camisola justa, cor berrante, a mostrar a elegância já recuperada. "Não é um serviço que a gente esteja habituada a fazer. Tem de se sujeitar a isso por falta de documentos."
O labirinto dos papéis
O estrafego dura há muito. Em 2004, Carlos trabalhava na construção de um centro comercial em Coimbra, já não partilhava o apartamento com os amigos, já encontrara um "ninho" para a sua família. A professora de primeiro ciclo pegou na filha, agora com seis anos, e veio.
O brasileiro, como muitos outros imigrantes ilegais, animou-se com a hipótese trazida pela última alteração legislativa. Pediu autorização de residência ao abrigo do artigo 88, n.º 2, da lei 23/2007 de 4 de Junho. "Tinha um contrato de trabalho, segurança social, tudo. O inspector do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras [SEF] disse que o contrato de trabalho era para Espanha, não valia para território português. Eu tinha que arranjar um contrato de trabalho em Portugal".
Arranjou um contrato com uma empresa portuguesa em troca de um salário fixo.
Aguentou três meses. "Seiscentos euros! Esse salário não dava para manter a família!" Quando o SEF o chamou, já tornara a trabalhar nas obras em Espanha com um subempreiteiro português. Recebeu a notificação para abandonar o país em 20 dias.
Vai buscar os documentos. Estica uma folha no sofá. A ordem para abandonar o país tem quase um ano: 17 de Junho de 2008. Motivo: "Não fez prova de possuir um contrato de trabalho". Estica outras folhas. Irrita-o ter sido obrigado a pagar multas quando deu início a um processo que, afinal, não o conduziu à tão desejada autorização de residência.
Orientado pela Comissão Nacional para a Legalização de Imigrantes, viu uma hipótese. A mulher tinha contrato de trabalho, descontava para a Segurança Social, podia tentar a legalização através dela. Só que o passaporte de Simone não fora carimbado à chegada e ela não provara ter meios de subsistência.
Simone faz limpezas 40 horas por mês em troca de 200 euros. Tinha de ganhar pelo menos um salário mínimo. A semana passada soube que de nada serviu argumentar que o marido trabalhava nas obras e ganhava 1200 a 1800 euros por mês, conforme a produtividade.
Acabou a paciência
"Isto está mal organizado", queixa-se, regressando do quarto, ao qual foi amamentar o bebé. Parece-lhe mal que a filha que nasceu aqui não tenha direito automático à nacionalidade. "Ela nasceu em Portugal, devia ser portuguesa". Podia solicitar a nacionalidade, se já tivesse concluído o primeiro ciclo ou se os pais tivessem autorização de residência há cinco anos.
"Acho que deviam levar em conta a família. Há aqui uma criança na escola, um bebé", insurge-se ela. "Família e muitos anos de Segurança Social paga", acrescenta ele. "Quase seis anos de descontos! Pelo tempo que está cá, pelo Segurança Social paga, deviam regularizar".
"Se está mau para os legais, imagine para os ilegais!", enfatiza Simone. "Com a crise, se você está ilegal, você não tem como arranjar trabalho", concorda Carlos. Não fosse a crise económica e financeira que grassa, fariam as malas e iriam tentar a sorte no outro lado da fronteira. Assim, não.
O artigo 122 da Lei de Estrangeiros dá-lhes uma hipótese. Uma criança que tenha nascido em Portugal, que aqui permaneça, e que se encontre a frequentar a educação pré-escolar ou o ensino básico, secundário ou profissional, tem direito a residência. E, a partir dela, os pais.
Já lhes disseram que pré-escolar significa infantário. Já lhes disseram que teriam de aguentar mais três anos sem papéis. Carlos fartou-se: "Não estou a trabalhar e não vou trabalhar mais. Vou embora para o meu país". É só o tempo da outra filha mais velha acabar o ano lectivo.
Simone olha o marido e o seu rosto contrai-se, como se ao olhá-lo lhe pesasse mais a desilusão dele, a desilusão deles: "Como nós, há muita gente". Só aqui, em Vila Nova de Gaia, duas famílias amigas vão partir. O televisor está sintonizado na TV Record. Carlos já se imagina a partir. Têm casa no Brasil - "casa e transporte próprio". Retomará a sua arte.