José Bento Amaro, in Jornal Público
Depois dos cocktails molotov surgiram ontem os tiros contra a esquadra
Sete anos depois, o Bairro da Bela Vista, em Setúbal, voltou à ribalta. Os motivos voltaram a ser os mesmos que o tornaram notícia anteriormente: a criminalidade, a violência. Na noite de quinta-feira, depois do funeral de um jovem, delinquente, baleado pela polícia, houve tumultos graves e até se arremessaram cocktails molotov contra a esquadra. Ontem, quando parecia que já se estava no rescaldo dos incidentes, foram disparados tiros contra a esquadra local. As associações do bairro e a junta de freguesia falaram dos porquês de tanta animosidade. "Desemprego" e "pobreza" foram as palavras mais repetidas.
"Ser pobre não significa que se é criminoso, na Bela Vista há gente boa e não é pela atitude negativa de 50 jovens que cerca de 7000 habitantes têm de ser rotulados de forma negativa", disse a presidente do Centro Cultural Africano, Carla Marie Jeanne.
Esta é uma ideia igualmente partilhada pelo presidente da Junta de Freguesia de São Sebastião, onde se insere a Bela Vista. Carlos Almeida entende que "o bairro é amigável e composto por uma população que, devido às muitas proveniências [africanos, ciganos e timorenses], demonstra ter uma grande capacidade para viver em comunidade".
O que leva então parte da população a atacar a polícia com pedras e engenhos incendiários? "No país a taxa de desemprego é de 8 por cento [7,8, segundo os dados do último trimestre do ano passado], no distrito de Setúbal anda nos 10,5 por cento e, no Bairro da Bela Vista, de acordo com o Observatório Municipal, está nos 23,5 por cento", afirma Carlos Almeida. Junta-se ao desemprego a pouca escolaridade e, de um momento para o outro, obtém-se uma mistura explosiva que leva os mais jovens, predominantes do bairro, a revoltar-se e a enveredar, por vezes, pela criminalidade. "A verdade é que os crimes nem sequer acontecem muito no bairro. É mais noutros locais, como aconteceu agora com o rapaz que foi baleado em Alvor", lembrou um responsável da PSP de Setúbal, salientando que "a relação dos polícias que estão na esquadra da Bela Vista com a população é, normalmente, boa".
O presidente da junta afirma, por sua vez, que a criminalidade no bairro é residual e que os seus valores ficam até muito abaixo dos registados noutras zonas de Setúbal menos carenciadas, quer socialmente quer a nível de equipamentos lúdicos e de lazer e parque habitacional.
Associado ao desemprego está o aumento da pobreza. Carlos Almeida é peremptório quando afirma que há mais gente a recorrer aos serviços da junta, seja para conseguir um emprego ou apenas para ter algo com que matar a fome. "Aparecem muitos jovens licenciados ou, na maior parte das vezes, os seus pais. Vêm pedir emprego. Depois vêm os que já tiveram uma vida boa e agora só têm dívidas e, por fim, vêm os idosos, preocupados porque, quando morrerem, não restará ninguém para auxiliar os seus filhos e netos".
"As pessoas nem imaginam o que é sair de casa, de manhã, para levar os filhos à escola ou para ir trabalhar e termos de voltar para trás, porque o bairro está fechado pela polícia", diz Mónica Frechaut, antiga residente da Bela Vista. "Já saí do bairro, mas fico triste por só se falar do que é mau. Só se dá atenção quando acontece algo de mau", diz.
a O Centro Cultural Africano é uma espécie de mini-Estado dentro do Estado. Na Bela Vista, em Setúbal, acolhe crianças de famílias que não possuem condições financeiras para as deixarem em infantários privados. Mas também presta um outro trabalho menos conhecido, como explicou Carla Marie Jeanne. Por ano, diz, auxília 26 famílias altamente carenciadas, distribuindo-lhes alimentos, vestuário, mobiliário, etc. A par dessas tarefas, as pessoas que trabalham no centro procuram ainda auxiliar na integração de muitas famílias de imigrantes africanos que os procuram. "Todos os anos atendemos a 80 a 90 famílias, ajudando-os a preencher a mais diversa documentação ou a conseguir-lhes emprego", adiantou a presidente do centro, lembrando que a maior parte da população activa da Bela Vista trabalha na construção civil. O Bairro da Bela Vista foi construido depois da revolução de 1974 e os seus 1000 fogos destinavam-se aos pescadores locais.