3.5.09

Temos a despensa cheia, mas o carrinho de compras está mais leve

Raquel Almeida Correia, in Jornal Público

Trocámos a carne por salsichas e conservas. Passámos a gastar mais dinheiro em massas e leguminosas para assegurar a base da alimentação. E abdicámos dos snacks e dos chocolates. A crise trouxe mais cautela à mesa


Se há indicador que a crise parece ter deixado ileso é o consumo de bens alimentares. À semelhança do que aconteceu nos últimos meses de 2008, também o início deste ano mostra que os portugueses preferem abdicar de outros luxos, como as idas aos restaurantes, mas continuam avidamente a encher a despensa de casa. Mais até do que o normal em alturas de maior estabilidade económica.

Há, no entanto, produtos que já não entram tão facilmente no carrinho de compras nacional, como a carne vermelha e os doces. São considerados acessórios, ao contrário do que se passa com bens mais acessíveis e que servem de base a refeições mais económicas, como as conservas e as massas. Isto sem contar com o fenómeno das marcas próprias (comercializadas pela grande distribuição), cuja quota de mercado tem vindo sempre a aumentar nos últimos tempos. Uma mudança de hábitos que tem como grande meta a poupança.

Dados do primeiro trimestre de 2009, cedidos pela empresa de estudos de mercado TNS, revelam que as compras nos supermercados e hipermercados aumentaram 2,9 por cento em volume e 3,9 por cento em valor. Subida que, além de provar que os consumidores não deixaram de lado a alimentação, mostra que estão a gastar mais dinheiro nestes espaços comerciais. E é precisamente nos produtos de mercearia que mais concentram as suas despesas.

Para a Sonae Distribuição, dona das insígnias Modelo e Continente, "os portugueses estão a procurar soluções que lhes permitam confeccionar as suas próprias refeições e, desta forma, gerir de uma forma mais económica o rendimento disponível". Tese que os indicadores do Instituto Nacional de Estatística (INE) corroboram, ao denunciarem uma quebra de dez por cento no volume de negócios dos serviços de hotelaria e restauração em Fevereiro de 2009, face a igual período do ano passado. Já em Outubro de 2008 a Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) falava de um abrandamento de 30 por cento (ver texto página seguinte).

A diminuição do rendimento das famílias, prejudicadas, por exemplo, pelo desemprego, e uma maior propensão para a poupança, gerada pelas baixas expectativas em relação à recuperação da actividade económica, são as principais causas por detrás da corrida aos supermercados. Porém, nem todos os produtos estão a ser beneficiados por esta tendência.

Refeições mais económicas

O TNS Worldpanel mostra que, nos primeiros três meses deste ano, vários alimentos sofreram um abrandamento na procura, como é o caso da carne, que registou uma descida de 5,2 por cento em termos de valor (em vez dos 189 milhões de euros facturados em 2008, a grande distribuição vendeu 179 milhões de euros deste produto entre Janeiro e Março de 2009).

José Oliveira, presidente da Leicar, associação que representa os produtores de carne da região do Baixo Minho, admite que "a crise está a levar as pessoas a preferir alimentos mais baratos". Nas carnes, por isso, a bovina "é a que mais está a sofrer com a crise", ao contrário do que acontece, por exemplo, com as das aves.
Mesmo assim, nem esta última tem escapado à triagem forçada dos portugueses. "Nota-se uma descida generalizada nas carnes", disse ao PÚBLICO José Oliveira, apontando como substituto mais provável "as conservas". A julgar pelos dados da TNS, está certo. De facto, o consumo de conservas de carne e de salsichas cresceu 9,2 por cento no primeiro trimestre deste ano - de 121 para 133 milhões de euros.
O mesmo se observa, por exemplo, nas conversas de fruta (que subiram 9,3 por cento), em detrimento da fruta fresca (que recuou 0,8 por cento). Domingos dos Santos, presidente da Federação Nacional das Organizações de Produtores de Frutas e de Hortícolas (FNOP), que representa quase cinco mil agricultores portugueses responsáveis por um volume de negócios de 150 milhões de euros, está "preocupado" com este fenómeno.

"É natural que, numa altura de crise, os portugueses optem por poupar o máximo dinheiro, mas isso não deve pôr em causa da qualidade da alimentação", alertou. No que diz respeito a alimentos frescos, Domingos dos Santos acredita que os consumidores mostram mais propensão para as leguminosas (feijões e ervilhas, por exemplo), "que servem de base para fazer sopas", e para fruta de calibres mais pequenos e, por isso, "de preço mais económico".

Comportamento idêntico ao que se verifica com o pão embalado e as tostas - produtos cujas vendas desceram, respectivamente, 8,5 e 69,3 por cento para os 6,6 milhões de euros. Tudo porque os portugueses estão mais voltados para comprar pão fresco de padeiro, que viu a procura aumentar 9,1 por cento, chegando, agora, a uma facturação de 36 milhões de euros (contra os 33 milhões de 2008).

Combater o desperdício

Além de esta mudança ser originada por uma maior preocupação com a relação quantidade/preço, também há bens que registaram um crescimento como consequência directa da perda de quota de mercado dos restaurantes e da transferência das refeições para dentro do lar. É o caso, por exemplo, da categoria de bebidas e, sobretudo, do café torrado. Só nestes dois bens a facturação dos super e hipermercados aumentou 35,4 por cento.

Em alturas de crise, "os portugueses tornam-se mais racionais nas compras. Não só compram mais barato, como põem de lado alguns produtos considerados supérfluos", diz Pedro Queiroz, director-geral da Federação das Indústrias Portuguesas Agro-alimentares (FIPA). É por isso que bens como os chocolates, cuja venda recuou 22,2 por cento entre Janeiro e Março (de 17,5 milhões para 14,6 milhões de euros), protagonizam descidas abruptas em termos de facturação. O mesmo aconteceu com os snacks (-49,3 por cento) e com os açúcares (-10,9 por cento).

Nos supermercados e hipermercados, as maiores perdas dão-se, contudo, ao nível dos artigos de drogaria e de higiene, considerados acessórios face à necessidade de manter a despensa cheia. Recuo que ocorre com "tudo o que o consumidor considerar menos necessário ou itens cujo consumo possa ser adiado", explica Paulo Caldeira, da TNS.

Este responsável refere que "ainda não temos 'tempos de crise' suficiente para conseguir retirar conclusões" finais sobre a mudança de hábitos de consumo dos portugueses. Mas os indicadores do primeiro trimestre desde ano mostram, para já, muito menos tolerância ao desperdício de dinheiro.