Gonçalo Frota, in Público
Ão, em cena até sábado no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, é uma peça musical, com os corpos metidos ao barulho, movida pela linguagem: tão sedutora quanto traiçoeira.
Não deve existir canção em português que não inclua rimas em “ão”. Não deve existir frase que nos saia da boca que não meta lá pelo meio um “ão”. O “ão”, como escreve Fernando Venâncio num livro (Assim Nasceu Uma Língua) que André e. Teodósio partilhou com os seus dois cúmplices em Ão, é um ditongo que se comporta como uma “espécie invasora” na língua portuguesa. Está por todo o lado, contamina todo o discurso, comporta-se como um monarca omnipotente, regozija-se com o facto de não poder ser devidamente pronunciado por qualquer cidadão nascido fora da lusofonia. Se, como se repete no espectáculo em cena no Teatro do Bairro Alto (TBA), em Lisboa, até ao próximo sábado, tropeçamos constantemente em sons que nos ficam colados e nos aprisionam, “ão” é, com toda a certeza, um dos mais insistentes.
Ão tem vários inícios. André e. Teodósio queria “fazer um espectáculo sobre a palavra”, conforme explica ao PÚBLICO. “A palavra não apenas dita, mas também cantada, que fosse o tema da conversa. Da mesma forma que os espectáculos da Praga [Teatro Praga, companhia de que é co-fundador], às vezes, têm por protagonista a arquitectura, o linóleo, o computador ou a própria palavra.”
Ao mesmo tempo, vinha deixando fermentar a vontade de trabalhar com a coreógrafa e bailarina Ana Rita Teodoro e o músico João Neves, reflexo da admiração pelos percursos e pelos imaginários e referenciais dos dois. Era uma vontade que havia de concretizar-se um dia, não necessariamente no mesmo espectáculo. Só que, à medida que começou a pensar neste ditongo como algo musical, e a convencer-se de que podia erguer-se um espectáculo em torno dessa sugestão sonora, os nomes dos dois passaram a coabitar na sua cabeça.
Unidos por “uma ideia de musicalidade”, os três fecharam-se vários dias numa sala a testar os pontos de confluência musicais e a construir, aos poucos, os temas “à [Ryuichi] Sakamoto, à Laurie Anderson, à Meredith Monk, à Sparks, à Meira Asher” que pontuam o espectáculo. No fundo, Ão é como uma investigação à relação de cada um/a com a palavra (dita ou cantada), problematizando a linguagem. Ou seja, escarafunchando naquilo que a linguagem tem de libertador, por permitir a expressão de cada indivíduo/a, mas também de castrador, no que as palavras aprisionam e limitam.
"Ão", o ditongo, é assim um pretexto, uma desculpa para um exercício lúdico em torno da linguagem. Em que as várias línguas se cruzam, podendo escutar-se um “pain au chocolat”, em que a dor é inglesa mas o chocolate é francês, ou em que se pode dizer, sem curto-circuito mental, “I stepped numa carta que me foi enviada with that sound”.
Na verdade, e dadas as muitas citações que atravessam Ão, de excertos musicais de Björk e Chico Buarque ao “metal fundente” de Entre nós e as palavras de Mário Cesariny, a peça vê-se também como uma homenagem à forma como as palavras, vindas da mais diversas fontes, nos ocupam e nos compõem. Daí que Ana Rita Teodoro refira “esta grande evidência, que aparece na peça, de o ‘ão’ estar tão presente no nosso dia-a-dia e nunca darmos de caras com ele de uma forma tão concreta”. Porque não é apenas de um “ão” que se fala, claro, mas de toda uma reflexão acerca “de estar, de pertença, de não pertença, uma junção de referências”.
Bonito e traiçoeiro
Tropeça-se muito no som e nas palavras em Ão. Tropeça-se não para cair, mas porque avançar pela língua e pela construção identitária a isso obriga. O espectáculo deixa-se atravessar por uma duplicidade que é possível sintetizar neste ditongo pelo qual podemos apaixonar-nos ao mesmo tempo que ele nos aprisiona. A peça constrói-se "também a partir dessa ideia, de que um ‘ão’ ou uma língua podem ser tão bonitos quanto traiçoeiros”.
Se tanto se fala em inglês como em português, as palavras coladas umas às outras, é porque o pensamento de Teodósio, o autor do texto, alguém que cresceu nos Estados Unidos antes de regressar a Portugal, funciona assim. Afinal, pelo meio desta plasticidade musical com que o texto vai surgindo, reforçando ou contrariando o que dizem os corpos dos três intérpretes, muitas vezes num estado quase contemplativo de câmara lenta, emergem migalhas ficcionais, autobiográficas, resultantes das leituras de cada um. Sem que haja vontade, em momento algum, de transformar Ão numa “aula de português cantada”. Não há teses linguísticas aqui; há sim, uma apropriação pessoal da língua, respeitando apenas regras próprias.
Para André Teodósio, esta é, no entanto, e apesar da dimensão corporal que Ão também assume, “uma peça sonora”. “Não estamos, mas podíamos estar no escuro, bastaria ouvir apenas ou sentir as frequências do som.” Porque os corpos, conclui, “são estranhos naquele espaço”, naquele “tapete” de frases onde é possível que qualquer um dos três intérpretes, a dado momento, possa tropeçar. Mas há nestes movimentos em palco, que Ana Rita Teodoro compara à empatia que se estabelece num concerto, em que os sons convidam a dançar e a cantar, uma ideia de poderem ser reproduzidos. Afinal, a linguagem é uma ferramenta de comunicação e de chegar ao outro. Falar sozinho é uma outra história. Em Ão, só se tropeça porque os olhos não estão no chão, e sim naquele que se quer alcançar.