Dificilmente Ernest Hemingway poderia prever que as suas palavras haveriam de marcar a abertura de um congresso organizado por empresas de telecomunicações, mas Pedro Siza Vieira, advogado e ex-ministro da economia, não desperdiçou a oportunidade de lembrar um célebre personagem do escritor americano, que explica como foi à falência em dois momentos: “Primeiro foi gradualmente, e depois foi de repente”. Estava dado o mote para a disrupção – o tema que levou o presidente Marcelo Rebelo de Sousa a deixar um alerta e que marca o 32º Congresso dos Negócios Digitais (ou Digital Business Congress, no original), que decorre entre terça-feira e quarta-feira de manhã, em Lisboa.
Antes de Pedro Siza Vieira, que preside a este Congresso, já Rogério Carapuça, responsável máximo da da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações (APDC), havia passado pelo palco para anunciar ao que vinha – e, como muita gente em circunstâncias similares, leu o primeiro discurso do evento com recurso às competências redatoriais da Inteligência Artificial do ChatGPT. O que permitiu confirmar rapidamente a existência de uma grande oportunidade de negócio, que também levanta incógnitas sobre os efeitos gerados na sociedade.
Longe de ser inédito, o uso do ChatGPT revelou-se certeiro para ilustrar a mudança acelerada que se perfila para os próximos tempos. Na breve apresentação do evento, Carapuça, fundador da Novabase e um dos veteranos das tecnologias portuguesas, não deixou de evocar o recém-malogrado Gordon Moore, fundador da Intel e nome maior da microeletrónica, e lembrou que o evento não iria deixar de passar pela economia dos tokens (representações digitais), pelo metaverso, ou pelas transformação na Administração Pública.
Em tom premonitório, Marcelo Rebelo de Sousa voltou a marcar presença na abertura do Congresso organizado pela APDC com um vídeo gravado de antecipação. Na resumida palestra, alertou para a necessidade de garantir que a evolução tecnológica “não nos leva a esquecer as pessoas”. E o presidente fez mesmo questão de recordar que, desta vez, com a expansão da Inteligência Artificial, não são só os infoexcluídos que serão afetados.
Por outras palavras: também os muitos trabalhadores e empresas que fizeram o esforço para acompanhar a evolução das tecnologias durante os últimos anos podem ficar em risco - ou serem tirados das novas equações que suportam o mundo dos negócios e do trabalho.
E por isso Hemingway continua certeiro – até na leitura de um quadro económico que não viveu. Siza Vieira recorda que as disrupções que se prenunciam não são de agora, e resultam antes de um fator cumulativo de vários anos que pode ter beneficiado centenas de milhões de pessoas, mas também levou a que dezenas de milhões de pessoas sentissem que “o sistema não estava a funcionar para elas”.
O fim de alguma barreiras ao comércio internacional trouxe paz e prosperidade, mas pôs em causa alguns dos princípios políticos e económicos das sociedades ocidentais, como a ideia de que o Estado não intervém na economia ou as políticas protecionistas, que de súbito passam a não saber como lidar com multinacionais com diferentes sedes.
Siza Vieira não tem dúvidas em considerar que Portugal foi um dos “perdedores da globalização” que chegou na viragem do século, mas também enalteceu o esforço coletivo de adaptação, com especial incidência no ensino, que permitiu que o portugueses ficassem “mais bem preparados para fazer coisas mais complexas”. O crescimento dos negócios e exportações tecnológicas, que já supera o do Turismo, foi outro dos indicadores mencionados pelo ex-ministro da Economia.
Carlos Moedas, presidente da Câmara de Lisboa, retomou a defesa da capital, enquanto centro agregador de inovação e empreendedorismo, que tem na recente fábrica de unicórnios o mais recente capítulo estratégico.
Sendo antigo Comissário Europeu com a pasta da Inovação, Moedas não deixou de lembrar a origem alentejana ao mesmo tempo que evocou no Dia da Europa (esta terça-feira) e o primeiro acordo do aço e do carvão entre França e Alemanha que trouxe, por fim, paz ao Continente poucos anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial.
“Às vezes nem sequer sentimos as maiores disrupções das nossas vidas”, porque “vêm de homens que mudam a vida de pessoas sem repararem”, disse o presidente da câmara.
Depois de recordar que Lisboa vale pelo tríptico que junta diversidade, identidade e uma noção muito própria do tempo, Moedas aproveitou para insuflar a audiência de algum otimismo. E retomou às palavras que Rogério Carapuça leu e que tinham sido redigidas pelo ChatGPT, mas que no entender de Moedas “não tinham alma”. “Não devemos ter medo do ChatGPT”, sugeriu o presidente da Câmara, para depois lembrar que é alma que diferencia os humanos.
Por quanto tempo mais será assim? A questão eventualmente haverá de ser abordada ao longo do Congresso da APDC, que decorre em formato híbrido e aberto para todas as pessoas em videoconferência, através da Internet (apenas se exige registo).
Além de várias sessões dominadas pela disrupção, o Congresso conta com debates e palestras dedicados ao metaverso, às comunicações quânticas, ao euro digital e à cibersegurança, e conta ainda como momentos altos os dois debates do “Estado da Nação”: um primeiro, com os representantes dos três maiores canais de TV, que decorre ao final da tarde de terça-feira; e um segundo com os representantes dos três maiores operadores de telecomunicações em Portugal, que decorre no final da tarde de quarta-feira.