26.1.09

Viagem ao tempo da lepra

Carina Fonseca, in Jornal de Notícias

São 21, os antigos leprosos que vivem no Hospital Rovisco Pais. Estão curados da doença que lhes deformou o corpo. A revolta lê-se nos seus rostos


Abel Almeida, 83 anos, é um dos que sobreviveram à lepra, mas quiseram continuar a viver na antiga leprosaria da Tocha, em Cantanhede. É perito em maquilhar a revolta com humor. Não esconde as mãos sem dedos e parece recordar cada instante, desde a infância, quando a doença o transformou num presidiário. "Fiz-me um auto-didacta, aprendi com a lei da vida: a pontapé e a soco".

Este domingo, assinala-se o dia mundial dos leprosos. Já não há plantas espinhosas em torno do Hospital Rovisco Pais, à época Quinta da Fonte Quente, onde chegaram a viver mais de mil pessoas, forçadas ao isolamento. Agora, é um centro de reabilitação e, daquele tempo, restam 21 ex-hansenianos (Hansen é outro nome da lepra, menos violento) que, uma vez curados, não encontraram lugar no mundo exterior. Estão unidos por um destino comum: foram devorados pela doença, quando ainda não havia cura, tendo ficado com sequelas.

Liga-os, ainda, outra coisa: "São todos revoltados", observa o director do Serviço de Hansenianos em Vigilância do Rovisco Pais, José Pagaimo. A experiência diz-lhe que a lepra "é um machado que cai sobre as pessoas". Abel Almeida sentiu o golpe, ainda menino. Estava no seminário da Figueira da Foz, adoeceu e viu a mãe sucumbir ao mesmo mal.

Natural de Arganil, Abel passou mais de dez anos no Hospital Curry Cabral, em Lisboa. "Sem tratamento, a lepra cresceu comigo à vontade", recorda. Seguiu para a Tocha, aos 24 anos, onde trabalhou em escritórios, escreveu no jornal "Luz", e casou. Mas a lepra também lhe levou a mulher, de quem não teve filhos. Quando lhe deram alta, em 1977, saiu para trabalhar em Ansião. Mas, em 1988, voltou ao Rovisco Pais, para ser operado ao pé, e quis ficar.

Quando se aproxima o dia mundial dos leprosos e os jornalistas aparecem, Abel não se importa de ser o guia da viagem ao passado, nem de dar a cara. "É esta que tenho, quem não quiser olhar não olhe", atira. Mas faz questão de esclarecer: "Não viemos de Marte! Somos diferentes só do ponto de vista físico!".

Os anos 50 marcaram o pico do internamento de doentes de toda a parte, na leprosaria da Tocha. Nem o filho de um príncipe da Indonésia escapou à clausura imposta. Naquela comunidade fechada, havia hospital, prisão, oficinas e campos de cultivo, descreve Manuel Teixeira Veríssimo, presidente da Administração do Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro - Rovisco Pais.

Cada bebé ali nascido era imediatamente levado para o exterior. "As crianças iam para o chamado preventório, viviam completamente afastadas dos pais. As visitas eram feitas através de um edifício com separação em vidro", conta Teixeira Veríssimo. Quadro mais negro pinta Abel Almeida, que testemunhou tudo. "Era uma cerca de arame farpado. Os pequenitos até se feriam no arame! Só depois vieram os vidros".

José Pagaimo tem alguma relutância em associar a lepra aos pobres, considerando que ela atingiu igualmente os ricos , mas nota: "Não há maior pobreza do que a situação em que aquelas pessoas ficaram, ao serem segregadas".

Abel esforçou-se por dar a volta por cima: "Tive de aceitar o que sobrou: uma vida normal de homem casado".