14.8.17

Observar a humanidade através do cinema

António Loja Neves, in Expresso

Da paixão de um historiador francês da arte cinematográfica pela região minhota melgacense nasceu um Museu do Cinema e a ideia de um festival internacional de documentários que vingou em Melgaço e ali cresce há quatro anos, fadado para desenvolver-se. Todos os anos, cinema com gente dentro

O festival Filmes do Homem, na vila de Melgaço, no extremo norte minhoto de Portugal, é organizado pela Associação de Viana do Castelo AO NORTE e dirigida por uma atrevida equipa coordenada por Carlos Eduardo Viana e por Rui Ramos, propõe um significativo lote de obras e premeia três documentários, dois portugueses e um estrangeiro de longa-metragem. Este ano foram contemplados a longa-metragem portuense “Tarrafal”, de Pedro Neves, e “Cidade Pequena”, a curta de Diogo Costa Amarante, já destacada em Berlim, bem como a melhor longa-metragem internacional “La Chambre Vide”, de Jasna Krajinovic.

Pedro Neves venceu o prémio de melhor documentário português com um trabalho em torno da memória de um dos antigos bairros da periferia da cidade do Porto, famigerado pela fama da sua carga de exclusão, e certamente por isso denominado Tarrafal. Tem uma história tumultuosa, mas o seu momento crucial terá sido a decisão de o abater ao efetivo, o que o transformou num monte de lixo e de escombros, por onde vagueiam surpreendentes personagens que fazem parte da sua história e não conseguem separar-se definitivamente daquele espaço e das suas recordações, mesmo quando é suposto não serem as melhores…

Entre a resistência dos que permanecem naquele território juncado de fantasmas e de restos putrefactos de edificações entretanto esmagadas por maquinarias a mando da câmara municipal, vamos conhecendo as confidências de antigos habitantes, “agarrados” nas memórias antigas e que deambulam perdidos como se lhes arrancassem a alma e parte importante da razão de viver. Anos depois da demolição do casario, dispersados os habitantes por outras localidades, ali persiste ainda a relação inesperada, quase umbilical, de um punhado de gente excluída que não consegue recuperar a vida que, dizem, lhes foi roubada quando o bairro se desmoronou e deixou de fazer parte da sua existência. Duro, quase fantasmagórico, o filme dá voz aos que ainda por ali vão relembrando outros tempos que não há maneira de salvar das ruínas…

Já a obra vencedora de melhor documentário de curta ou média-metragem internacional, trabalho de fim de mestrado de Diogo Costa Amarante num instituto norte-americano, discorre sobre o imaginário e os receios de Frederico, uma criança de seis anos que acaba de descobrir na escola que as pessoas morrem quando o coração para de bater. Naquele dia não consegue dormir e a mãe tem que cumprir, com ele, um longo fadário até à reconquista da serenidade e do almejado equilíbrio. Deste filme se pode dizer ser o de um “one man show”, pois Andrade, para além da cumplicidade familiar no apoio ao financiamento, foi realizador, produtor, argumentista, diretor de fotografia, de montagem e de som. Resultado deste esforço, conquistou o Urso de Ouro da Berlinale deste ano, para uma curta-metragem. A ousadia do formato pelo que optou, pouco comum em cinema, e para mais com referências a período clássico da pintura, valeu-lhe o destaque em Berlim, e a conquista da ‘torre de menagem’ em Melgaço.
“Quarto Vazio”, uma obra em torno as famílias desfeitas por causa da fuga de filhos para se incorporarem nas fileiras do Daesh

“Quarto Vazio”, uma obra em torno as famílias desfeitas por causa da fuga de filhos para se incorporarem nas fileiras do Daesh

A melhor longa-metragem internacional, “O Quarto Vazio”, foi entregue à eslovena Jasna Krajinovic, para a sua co-produção fanco-belga “O Quarto Vazio”, que regista a dor, a surpresa e o estupor de uma mãe, Saliha, quando percebe que o filho partiu abruptamente para a Síria, a fim de incorporar-se nos exércitos que fazem a jihad. Ainda mal refeita da notícia, três meses depois a família é informada da sua morte. Destroçada, Saliha decide intervir e juntar-se ao movimento de outros pais cujos filhos um dia, sem deixarem notícia disso ou qualquer rasto, partiram para a Síria e integraram os combates islâmicos.
Caminhos (quase) desconhecidos da vida do cantor José Afonso…

Além dos vencedores, houve filmes que possibilitaram o visionamento de obras em torno de temáticas candentes, aproveitadas para debates e acesa troca de ideias entre cineastas e público. Destaquemos “Rosas de Ermera”, um trabalho muito sensível a propósito da separação da família do cantor José Afonso, quando a Segunda Guerra Mundial a dividiu, e que teve que deslocar-se de Lourenço Marques, onde o pai era juiz, para Timor, regressando os dois irmãos mais velhos – entre eles Zeca Afonso, na altura com 10 anos – a Portugal, para casa de familiares, já que em Díli não havia condições para continuarem os estudos. Dessa difícil separação, alimentada pelos trágicos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial e pela invasão japonesa daquele território colonial português, Luís Filipe Rocha tece uma delicada teia de memórias entre a irmã, que acompanhou o pai na ida para Timor, e o irmão que sobreviveu após o falecimento de Zeca Afonso, uma renda precisa, que Rocha respeita com sensibilidade e escrúpulo, aproveitando a surpreendente capacidade de memória vivaz dos dois ‘narradores’ que vão construindo os episódios das suas vidas naquela época conturbada, independentes um do outro. Um filme a não perder e a merecer cuidada divulgação, por um lado porque quase nada se sabe daquela fase da história pessoal do cantor, e por outro porque se trata de um testemunho histórico de testemunhos de uma fase da Grande Guerra de que quase ninguém fala ou analisa.
“Terceiro Andar”, de Luciana Fina, aborda o cruzamento de culturas e de sentimentos em plena cidade de Lisboa

“Terceiro Andar”, de Luciana Fina, aborda o cruzamento de culturas e de sentimentos em plena cidade de Lisboa
…e histórias do Bairro das Colónias

A italiana Luciana Fina veio viver para Lisboa há mais de 20 anos, passando a habitar na cidade do Tejo antes de ela ser moda para os europeus, e quando os estrangeiros aqui estabelecidos no velho centro histórico da cidade, à freguesia de Arroios, começavam a estruturar uma comunidade heterogénea, multicolor e multicultural. Luciana vive num clássico edifício de quatro andares do denominado Bairro das Colónias, e ali foi criando laços sociais que hoje são já de amizade. Num cruzamento de culturas ancestrais e hábitos quotidianos, num tributo coletivo pelas formas diversas de encarar sentimentos, a realizadora decide trabalhar um filme em torno destas descobertas transportadas por línguas diversificadas. Afinal, nesta ‘babilónia’ intercontinental, em que língua se escreve uma declaração de amor?
“Ilha dos Ausentes” refere uma viagem entre a França e Portugal num carro com emigrantes portugueses, em período de férias

“Ilha dos Ausentes” refere uma viagem entre a França e Portugal num carro com emigrantes portugueses, em período de férias
Do filósofo parisiense e a guerra…
… até ao emigrante português e a viagem ao país

Sempre polémico, o filósofo e escritor francês Bernard-Henri Lévy desloca-se com uma equipa de operadores de câmara até o Oriente. A viagem, complexa, decorre entre julho e dezembro de 2015. Percorrem os 1000 quilómetros da linha da frente que separa o Curdistão iraquiano da região onde estão estacionadas as tropas do Daesh. O filme apresentado em Melgaço é uma espécie incomum de um diário de bordo em imagens, privilegiada de um conflito de que muito se fala mas é muito mal estudada e onde se jogam decisivas páginas da História global da humanidade.

José Vieira, emigrante em França desde 1965, é um dos principais realizadores que foram registando o fenómeno da emigração, e não apenas o êxodo português, desde os tempos dos ‘bidonvilles’ de barracas atoladas no meio da lama, até ao novo período dos grandes carros, as vistosas ‘bagnoles’, testemunho mais recente da riqueza e do progresso acumulados, tantas vezes menos verdadeiros mas alugados pelo período de férias para impressionar os que por aqui decidiram ficar na terreola. Ele realizou cerca de trinta documentários incidindo neste particular, que ficam como importante testemunho, insubstituível, da saga da emigração portuguesa.

Este ano trouxe “A Ilha dos Ausentes”, registo que dura uma hora sobre a viagem que traz de volta ao país de nascimento os que fugiram à miséria e à guerra colonial, em demanda de quimeras. Trata-se de um filme ‘fechado’, dentro de um carro “onde se permanece, ao longo dos quilómetros de estrada, sob custódia da nossa memória, num dia único estafante”, um percurso que serve perfeitamente para “nos interrogarmos sobre a relação que nos une ao país da nossa infância”.

Os filmes apresentados no Minho concorrem ao Prémio Jean Loup Passek, reconhecido historiador e crítico francês falecido no ano passado, que se apaixonou pela paisagem de Melgaço e à vila doou grande parte do seu espólio, constituído por livros, fotografias e cartazes temáticos, documentos, câmaras e outros aparelhos cinematográficos históricos que estão na origem da constituição do pequeno mas interessante Museu de Cinema local. A Câmara Municipal, dirigida por Manoel Calçada Pombal, cuida e mantém aberto o estabelecimento, e do entusiasmo do presidente da edilidade e sua compreensão sobre o interesse de registar e debater temáticas que respeitam à região, nasceu e tem crescido o Festival de Cinema Documentário Filmes do Homem, privilegiando tês vetores: identidade, memória, fronteira. Num território português dos mais marcados pela emigração e, outrora, pelo contrabando, estes temas são cruciais e trazem anualmente novas abordagens, até pelo olhar dos jovens que frequentam as experiências da residência cinematográfica coordenada pelo cineasta Pedro Sena Nunes, e que a cada ano permitem a aumento do acervo do arquivo de imagens sobre Melgaço e paragens limítrofes.

Esta iniciativa, que conjuga visionamento de filmes e amplos debates, é um laborioso trabalho que garante um olhar plural sobre o mundo contemporâneo, não deixando de parte a importância da preservação da memória da vida melgacense, dos hábitos e das festividades dos seus habitantes.